Vídeo
sobre a história de Seu João Alcides, da Comarca de Conchas, que foi
por mim apresentado no "GeoAraraquara" (10 de julho de 2004) e em vários
outros congressos, simpósios e palestras sobre georreferenciamento de
imóveis rurais.
O
tema aqui tratado é o impacto gerado pela nova legislação sobre a
comunidade rural quando do início da vigência da legislação do
georreferenciamento. Esclareço que se trata de uma situação anterior ao Decreto nº 5.570/2005, que solucionou quase todo o problema discutido nesse vídeo.
O
impacto gerado pela divulgação do vídeo ao público especializado e aos
órgãos governamentais colaborou muito com para a edição do Decreto nº
5.570/2005. Por esse motivo, nossa homenagem ao "Seu João Alcides", que,
mesmo sem saber, conseguiu "fazer a diferença".
Seguem abaixo:
1) a narração completa do vídeo; e
2) importante esclarecimento final.
1. A História de Seu João Alcides
Esta
é a história de Seu João, um velho produtor rural de nossa comarca de
Conchas, um senhor de 87 anos, batalhador, proprietário de um sítio de
18 alqueires na zona rural de Pereiras, comarca de Conchas.
Sempre
deu duro na vida, retirando seu sustento da terra. Comprou seu sítio à
vista, em 1950, dinheirinho contado na mão do vendedor. Guarda até hoje
com muito carinho a escritura devidamente registrada numa velha, mas bem
cuidada pasta de plástico. Ali está seu título, o documento que
comprova ser ele um homem de posses. São as escrituras de suas terras
feitas pelo tabelião João Herculano de Almeida, falecido há muitas
décadas. Dentre os guardados com primor e orgulho, está o recibo
manuscrito do então ofício judicial, que registrou seu sítio no livro 3A
(transcrição 1.019).
Entretanto,
a descrição de seu sítio é por demais falha e não define a forma nem a
área exata do imóvel. Mas essa era a forma usual da época para descrever
os imóveis rurais:
"Um
sítio localizado na Água Choca, município de Pereiras, com uma área de
mais ou menos 300 braças quadradas, dividindo com Fulano, Sicrano e
Beltrano."
As
descrições vagas e lacônicas dos registros antigos não foram assim
feitas por culpa dos proprietários. Era a regra vigente e por todos
aceita. Era o que o Estado fazia e, com base nela, prometia garantir a
eles a necessária segurança jurídica.
Com
o passar do tempo, houve um progressivo (e correto) rigor na
interpretação dos princípios registrais, em especial do princípio da
especialidade objetiva. No entanto, apenas nós, registradores, sabemos
disso. O Seu João, orgulhoso de seu título registrado e muito bem
conservado, nunca ouviu falar nisso…
Por
volta do final da década de 1960, esse pequeno proprietário rural, que é
um leigo, teve parcela de sua terra desapropriada pelo Estado para
passagem de uma rodovia. Um pedaço pequeno, num canto, tanto que ele nem
fez questão de discutir os valores, aceitando de bom grado a
desapropriação amigável. Afinal, a estrada traria progresso para suas
terras.
No
passado nunca se fazia descrição de remanescente. Resultado: com a
perda de parcela de área, seu imóvel, cuja transcrição já estava mal
descrita, ficou com a especialidade objetiva e disponibilidade
qualitativa ainda mais comprometidas.
“Impossível abrir matrícula, Seu João. Vai precisar pedir pro Juiz”, disse-lhe o cartorário há alguns anos.
Desesperado
para emitir cédulas hipotecárias e dar continuidade à sua lavoura, Seu
João, com muita dificuldade, paga engenheiro, paga advogado, com
dinheiro contado moeda por moeda. O levantamento do engenheiro é lento,
demora algumas semanas. Depois disso, o processo é iniciado e tramita
muito mais lentamente ainda. No meio do caminho, leis, decretos,
portarias do Incra, documentos de que Seu João nunca ouviu falar – bem
como e a bem da verdade nem seu advogado.
Antes
da sentença, o juiz, cauteloso, remete o processo para manifestação do
oficial de registro. Ciente da nova lei do georreferenciamento, o
oficial faz seu parecer em teor técnico e de um primor jurídico
inigualável. O juiz acata. Decisão interlocutória:
“Prazo para georreferenciar o imóvel sob pena de extinção do feito”.
Seu João não teve alternativa: desistiu da ação por insuficiência financeira para dar prosseguimento ao processo.
Em
face disso, pergunto-lhes: Como exigir o georreferenciamento nesse
caso? E o princípio da razoabilidade? E o direito do proprietário de
dispor de suas terras? E a gratuidade que a lei do georreferenciamento
lhe garante?
Como
ainda não houve a regulamentação sobre a gratuidade do
georreferenciamento, Seu João perdeu tudo. Perdeu o dinheiro pago ao
engenheiro, cujo serviço não serviu de nada; perdeu o dinheiro pago ao
advogado, cujos honorários lhe são devidos em pagamento aos serviços
prestados; perdeu o financiamento que o Banespa lhe havia prometido
mediante emissão de cédula rural hipotecária, uma vez que não há como
registrar a hipoteca sem abrir matrícula.
Conclusão:
criaram um sistema novo para dar mais segurança jurídica ao
proprietário rural, para ajudar o produtor rural, para ajudar Seu João,
para trazer progresso à suas terras… Louvável iniciativa pública!
Mas, em virtude disso, Seu João está perdendo tudo! Seu João está passando fome!
Desesperado, Seu João encontra alguém que quer comprar suas terras – sua salvação!
Mas
não pode vendê-las! O tabelião sabe que não há como descrever o imóvel
na escritura nem há como registrá-la. Propõe, então, um contrato de
gaveta –paliativo, mas todos fazem–, porém o interessado pelas terras se
assusta e vai embora. Seu João perde o negócio, perde de novo; continua
a passar fome…
Esta
é a história de Seu João Alcides, da comarca de Conchas. Mas também é a
história de muitos outros Joãos de nosso imenso Brasil, pessoas
honestas, trabalhadoras, de vida sofrida, que necessitam e aguardam a
compreensão do Estado para uma vida melhor.
Seu João, essa é a sua história. Seu João, essa é a verdadeira história do Brasil!!!
2. Esclarecimento Final: A Verdadeira História
A
história de Seu João foi contada em todo o Brasil. Por ser uma história
que se encaixa perfeitamente na difícil situação de vários brasileiros
por aí afora, teve que ser repetida à exaustão, pois a realidade comove,
a realidade choca.
O
registro imobiliário é um repertório de importantes informações sobre a
comunidade local. Para conhecer uma boa parte da história de uma
localidade, basta pesquisar o conteúdo dos registros públicos, em
especial as matrículas e seus assentos modificadores. Praticamente, tudo
passa pelo registro, e a história se perpetua, fica gravada para sempre
nos arquivos do cartório.
Ano
e meio após a produção desse vídeo, chegou no Registro de Conchas um
documento para ser averbado numa matrícula. Uma certidão de óbito
novinha, extraída há poucos dias, que noticiava o falecimento de um
cidadão da comarca. Seria um documento comum, como qualquer outro que
chega diariamente ao serviço imobiliário para completar as informações
do registro, se não fosse um porém:
A certidão comunicava o falecimento do nosso velho amigo Seu João Alcides.
Mas
sua história não teve um final tão trágico como parece. Sua história,
contada aos quatro cantos do país, não foi exatamente como narrada.
Na verdade, ao término da ação judicial de retificação de registro, o processo não foi extinto pelo não-cumprimento da lei do georreferenciamento.
Não foi porque o Poder Judiciário, o Ministério Público e o Registro
Imobiliário de Conchas trabalham com um mesmo fim, todos objetivam a
Justiça do caso concreto. A lei, da forma como estava (antes do Decreto
nº 5.570/2005), era injusta e merecia flexibilização. E assim foi
decidido.
Seu
título judicial resultou numa nova matrícula para seu imóvel,
totalmente saneada de velhos vícios e, logo em seguida, Seu João efetuou
a doação de seu sítio a seus dois únicos filhos, reservando a si o
usufruto vitalício do imóvel, uma vez que não possuía nenhum outro bem.
Seus
filhos obtiveram acesso ao crédito rural e construíram uma pequena
granja. Os negócios vão bem e a família – Seu João, os filhos, as noras e
os cinco netos – conheceu finalmente a fartura sobre a mesa. A certidão
de óbito apresentada era para extinguir o usufruto. Junto com ela, uma
outra cédula de crédito rural hipotecária, ou seja, um outro
financiamento, novos negócios, mais progresso para a família.
Seu
João cumpriu seu papel social entre nós. Deixou filhos e netos, bem
encaminhados. Deixou seu patrimônio previamente partilhado. Deixou tudo
bem documentado, como sempre gostou de fazer. Deixou, enfim, muitas
saudades!