A massificação da sociedade colocou em crise o
modelo contratual elaborado da época do liberalismo econômico,
concomitantemente à Revolução Francesa e o Código Civil de Napoleão.
Insta relembrar que este modelo foi elaborado com base ainda no
formalismo do direito romano-germânico, pressupondo acima de tudo uma
igualdade jurídica (não social nem econômica) entre as partes
contratantes, além do reinado absoluto da autonomia da vontade,
refutando qualquer ingerência externa por parte do Estado.
O chamado contrato
por adesão, nesse desiderato, nada mais é do que a conseqüência lógica
dessa massificação social, e reflete o modo de produção e distribuição
de bens e serviços em larga escala e de forma impessoal e abstrata,
inclusive no setor imobiliário.
No contrato por adesão,
não há tratativas nem são as cláusulas livremente negociadas entre as
partes. Ao contrário, o fornecedor, chamado de predisponente, elabora de
antemão o contrato e o submete ao consumidor, denominado aderente, que,
como o próprio nome já esclarece, tem apenas a faculdade de aceitar ou
não aos seus termos. Justamente por seu caráter, que implica em séria
limitação da autonomia da vontade de uma das partes, o aderente a um
contrato desse tipo merece tutela especial do legislador, que busca, com
isso, evitar a perpretação de abusos por parte do fornecedor de bens ou
serviços.
Temos que os contratos
por adesão são instrumentos absolutamente imprescindíveis ao capitalismo
moderno: seria impossível que um grande banco negociasse cliente a
cliente as condições gerais da outorga de crédito, ou mesmo que o
fizesse uma grande incorporadora imobiliária, ao comercializar
determinado empreendimento com centenas de unidades. Tal situação, além
dos custos e morosidade, importaria em diminuição da previsibilidade de
quaisquer empreendimentos, aspecto conferido pela adoção de contratos
padronizados para todos os consumidores de determinado bem ou serviço.
A partir da edição da
lei 8.078/90, popularmente conhecida como Código de Defesa do
Consumidor, criou-se um microssistema de proteção ao hipossuficiente que
consolidou as bases de um novo sistema contratual, que, abandonando a
ficção da igualdade entre as partes contratantes, instituiu mecanismos
que equalizam as desigualdades que comumente se verificam em qualquer
relação contratual de consumo. Nesse ínterim, importante destacar o
magistério de Nelson Nery Júnior quando afirma que, por ser norma de
sobredireito, a teoria geral dos contratos criada pelo capítulo VI do
Título I do CDC deve ser aplicada a toda e qualquer relação jurídica de
direito privado, seja civil, comercial ou de consumo.
Os contratos de
incorporação imobiliária, por óbvio, não poderiam fugir a esta regra,
precipuamente por se constituírem, em sua esmagadora maioria, em
contratos de adesão, em que o adquirente coloca-se em posição de
inferioridade em relação ao incorporador, justamente pelo fato de não
poder negociar com liberdade o conteúdo da avença. Como toda relação
jurídica, qualificam-se estes contratos tanto pelo seu aspecto subjetivo
quanto objetivo, que serão a seguir analisados.
A definição de
incorporador encontra-se insculpida no artigo 29 da Lei 4.591/64, a Lei
dos Condomínios e Incorporações, nesses termos:
"Art.
29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante
ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a
venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais
frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em
construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas
para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a
incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a
certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas."
E a definição de fornecedor nos é trazida pelo artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor, litteris:
"Art.
3º. "Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que
desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização
de produtos ou prestação de serviços."
O conceito abrange,
portanto, todos aqueles que ofertem bens ou serviços no mercado de
consumo, incluindo-se aí, sem maiores dificuldades, o incorporador
imobiliário. Resta agora saber se o adquirente de unidade condominial
autônoma pode ser equiparado a consumidor.
A Lei 4.591/64, quando
de sua edição, buscava justamente proteger o adquirente de
incorporadores inescrupulosos que amealhavam somas consideráveis no
mercado, sem as mínimas condições de levar adiante o empreendimento
anunciado. Tal era a situação, que a incorporação imobiliária começou a
experimentar descrédito perante a sociedade, o que ameaçava o regular
desenvolvimento desse importante filão, principalmente nos grandes
centros urbanos.
Assim, desde o início, o
adquirente de unidade condominial para uso próprio foi qualificado,
pela legislação específica, de hipossuficiente a necessitar de proteção
contra abusos do poder econômico. Ora, esse precisamente o espírito da
lei consumerista, quando, em seu artigo 4º, assim define a política
nacional das relações de consumo:
"Art.
4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o
atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia
das relações de consumos, atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo"
E o conceito de consumidor vem no artigo 2º da mesma lei, nestes termos:
"Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."
Destarte, de ordinário,
o adquirente de unidade condominial é considerado consumidor nos termos
da lei. Diz-se "de ordinário", pois se o objetivo da transação for a
revenda, ou se o adquirente não for o destinatário final do bem imóvel,
não estaremos diante de relação de consumo.
Configurada a relação
do ponto de vista subjetivo, resta a análise de seu objeto. Este não
requer maiores considerações, ante a simples leitura do §1º do art. 3º
do CDC: "Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou
imaterial." E logo adiante, no §2º do mesmo dispositivo: "Serviço é
qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista."
Seja a incorporação
imobiliária considerada como atividade de corretagem, seja de promoção,
seja de venda e compra, seja por um misto de todas elas e ainda outras
(orientação que nos parece a mais correta), estaremos, inegavelmente,
diante do fornecimento de um produto (a fração ideal do imóvel
correspondente a unidade condominial que se adquire) ou de um serviço (a
intermediação entre o construtor e o adquirente).
Perfeitamente possível,
assim, a responsabilização do incorporador por vício do produto e pela
solidez e segurança da obra perante a lei de defesa do consumidor, que é
o que se procurará explicitar, inda que brevemente, nas próximas
linhas.
Segundo
Rodrigo Azevedo Toscano de Brito, “o incorporador tem a obrigação de
colocar o imóvel do mercado de consumo em perfeitas condições de uso e
fruição, na forma prometida e de conformidade com o projeto, o qual deve
estar registrado desde o início dos trabalhos. Caso seja detectado
qualquer vício, oculto ou aparente, ou problema na solidez e segurança
do imóvel, o incorporador será obrigado a repará-lo, de maneira a deixar
o imóvel da forma prometida ao adquirente”.
Duas
são as hipóteses de responsabilização do incorporador pelo Código de
Defesa do Consumidor: por fato do produto e por vício do produto.
Explicitando o modelo de responsabilização positivado no CDC, afirmam os
autores do anteprojeto que lhe deu origem:
“Entende-se
por defeito ou vício de qualidade a qualificação de desvalor atribuída a
um produto ou serviço por não corresponder à legítima expectativa do
consumidor, quanto à sua utilização ou fruição (falta de adequação), bem
como por adicionar riscos à sua integridade física (periculosidade) ou
patrimonial (insegurança) do consumidor ou de terceiros.“ (in “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, Forense Universitária, 7ª ed., p. 155).
Infere-se, a partir daí, que vício do produto
é o defeito que compromete a prestabilidade e/ou servibilidade do bem
imóvel ofertado, estabelecendo uma relação de desconformidade entre a
prestação (construção e entrega da unidade) e contraprestação (pagamento
do preço estipulado). Assim, por exemplo, problemas com a qualidade da
pintura, revestimentos e funcionamento das instalações hidráulicas (os
exemplos são de Rodrigo Azevedo Toscano de Brito), que diminuem o valor
patrimonial do bem. O defeito pode ser também de quantidade, se o imóvel
apresenta dimensão mais de 5% inferior ao anunciado.
Diferentemente, fato do produto
é o defeito de qualidade ou quantidade que, além de comprometer a
prestabilidade e a servibilidade do produto, coloca em risco, de alguma
forma, a segurança e a incolumidade do consumidor ou de terceiros. São
os chamados acidentes de consumo.
Em
ambos os casos, a responsabilidade do incorporador é objetiva, ou seja,
independe da demonstração de sua culpa. No caso de fato do produto,
prescreve em cinco anos a pretensão à reparação dos danos causados,
contados da data do efetivo conhecimento do dano e de sua autoria (art.
27 do CDC). No caso de vício do produto de fácil constatação, o prazo
para propositura da competente ação caduca em 30 dias, no caso de bens e
serviços não duráveis, e em 90 dias, no caso de bens e serviços
duráveis. Se o vício for oculto, ou seja, sua ocorrência não for
verificável de imediato, o prazo é de 90 dias contados do conhecimento
do vício.
Em
relação a este último ponto, criou-se um conflito com a entrada em vigor
no Novo Código Civil. É que seu artigo 618, ao tratar da garantia legal
dos contratos de empreitada, estipula prazo de 180 dias, após o
aparecimento do vício ou defeito, para a propositura da ação objetivando
o ressarcimento ou abatimento proporcional do preço. Em virtude disso,
tem-se entendido que, por se tratar de norma mais benéfica ao
consumidor, sua aplicação deve ser preferida ao artigo 26 do CDC.
CONCLUSÃO
A
Lei 4.591/64, definindo os direitos e deveres recíprocos tanto do
incorporador quanto do adquirente da unidade condominial autônoma,
estabeleceu um sistema de proteção às partes envolvidas, em especial
deste último, evidentemente a parte mais fraca da relação,
O
Código de Defesa do Consumidor, como microssistema jurídico cujo alcance
se estende a todo o direito contratual, teve reflexos também nos
negócios de incorporação imobiliária. Sendo os contratos, de regra, por
adesão (posicionando o adquirente como hipossuficiente), configurando-se
a figura do incorporador como fornecedor de bens e serviços, e a do
adquirente como consumidor, tratando-se o bem imóvel de bem de consumo,
perfeitamente possível a responsabilização da empresa incorporadora por
acidente de consumo ou vício do produto.
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sexta-feira, 15 de julho de 2011
Incorporação imobiliária e o Código de Defesa do Consumidor
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