Fladja Raiane Soares de
Souza
Advogada
da União
Sumário: 1. Introdução; 2. Desapropriação: modo originário de
aquisição da propriedade; 3. Modalidades de desapropriação; 4. Procedimento
expropriatório; 5. Momento consumativo da desapropriação; 6. Registro do Imóvel Expropriado; 7.
Conclusão; 8. Referências bibliográficas.
1. Introdução:
Consiste o direito de
propriedade em uma garantia fundamental do homem (art. 5.º[1]
da Constituição Federal/88), assegurada a sua inviolabilidade, nos termos da
lei. Assim, tem a propriedade status
de direito fundamental. Ademais, revela-se como o mais amplo direito de
senhorio que pode se verificar sobre um bem (art. 1.228[2]
do Código Civil/2002), porquanto assegura, sob o aspecto interno da relação de
propriedade, poderes de uso, gozo e fruição sobre o bem, e, ainda,
externamente, poder de reivindicação de quem injustamente o detenha.
Assumindo a feição
socializadora consagrada na CF/88, o CC/2002 tratou de inserir na definição do
direito de propriedade o conceito de função social da propriedade (art.
1228, §1º), pelo que o exercício dos poderes de sujeição do bem deve se dar em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e com a preservação do
meio ambiente.
Entretanto, em que
pese o cunho privatístico a que se historicamente se vincula a propriedade,
interessa observar que desde os Romanos[3]
esse direito acha-se passível da interferência do Estado, ante os reclamos de interesse público. Insere-se
aí a desapropriação, instituto do Direito Administrativo, mais
especificamente uma das modalidades de intervenção na propriedade por parte do
Poder Público, e que se revela como a forma mais drástica de intervenção, haja
vista consistir em privar alguém da propriedade (cf. Aurélio Buarque),
ou seja, tirar a propriedade de outrem de forma compulsória. É forma de
intervenção supressiva, na terminologia de Carvalho Filho[4],
enquanto que as demais modalidades (servidão administrativa, requisição, ocupação
temporária, limitação administrativa e tombamento) são restritivas, por
apenas retirarem algumas faculdades do domínio.
Conceitua-se a desapropriação como um direito do Estado que se
traduz em procedimento regido pelo Direito Constitucional-Administrativo,
visando à imposição de um sacrifício total, por justa causa, de determinado
direito patrimonial, particular ou público – respeitada a hierarquia -,
tendo como finalidade a aquisição pelo Poder Público ou de quem, delegadamente,
cumpra o seu papel, por intermédio de indenização que há de ser prévia e justa,
efetuado o pagamento em dinheiro, com as ressalvas constitucionais expressas [5].
Por
conseqüência, com a desapropriação, o bem passará à dominialidade pública,
perdendo sua categoria de bem privado - na maioria dos casos -, sujeitando-se,
assim, ao regime jurídico de direito público. Logo, a definição do momento em
que se consuma a desapropriação, com a incorporação do bem à Fazenda Pública, é questão que apresenta relevância
jurídica como marco delimitador da aquisição de propriedade pelo expropriante,
e conseqüente perda para o expropriado.
De início,
entretanto, cumpre observar a natureza da aquisição que se dá pela
desapropriação, e as modalidades e procedimentos desta, por serem temas
essências à abordagem de seu momento consumativo, tema sobre o qual surgiram
diversas posições doutrinárias, conforme se verá adiante.
2. Desapropriação: modo originário
de aquisição da propriedade.
Classificam-se
os meios de aquisição de um bem em originários e derivados. Na
forma originária não há transmissão da coisa, pois o fato jurídico em si é que
enseja a transferência da propriedade,
prescindindo de correlação com qualquer título jurídico de que seja titular o
anterior proprietário, não havendo sub-rogação de titular a titular. Já na derivada, ocorre relação negocial entre o
proprietário e o adquirente, sendo necessário, portanto, a participação
volitiva do transmitente.
Estas são as
definições adotadas pela doutrina moderna em geral, que para distinguir
os meios originários dos derivados tomou como critério o aspecto subjetivo, que se
verifica pela existência ou não de transmissão ou sucessão, o que, por sua vez,
implica numa relação de causalidade entre o transmitente e o adquirente.
Todavia, o jurista BRINZ, partindo de critério objetivo, considerava que só
havia aquisição originária quando o direito de propriedade não preexistisse à
sua aquisição, ou seja, a distinção estava no fato de a coisa ter tido, ou não,
anteriormente, dono. Essa tese, todavia, não prevaleceu, dentre outros motivos,
por se constatar que os meios que dizia ela ser derivados, tal como a
usucapião, permitirem a aquisição de direitos reais intransmissíveis, como o
usufruto, o uso e a habitação. Assim, demonstrou-se que o novo direito não deriva
do anterior, mas surge originariamente, opondo-se inclusive ao proprietário. [6]
Nessa linha, a desapropriação,
segundo ampla maioria da doutrina, é forma originária de aquisição da
propriedade, o que significa que é, por si
mesma, suficiente para instaurar a propriedade em favor do Poder Público,
independentemente de qualquer vinculação com o título jurídico anterior
proprietário. Assim, tal como na
usucapião, ocupação, especificação, ou acessão, é irrelevante a vontade
do proprietário, pois não é transmitente do imóvel bem como pouco interessa o
título que possua, se justo ou injusto, de boa ou má-fé.
Carvalho Filho
ressalta ser a desapropriação um modo sui generis de aquisição da propriedade, mas “pela forma como se consuma, é de ser considerada forma de aquisição
originária, porque a só vontade do Estado é idônea a consumar o suporte
fático gerador da transferência da propriedade, sem qualquer relevância
atribuída à vontade do proprietário ou ao título que possua”[7].
Juarez Freitas observa que ela se caracteriza como modalidade de
aquisição originária pelo Poder Público, pois o bem se incorpora ao domínio
público com abstração plena de qualquer título antecedente, sem que se deva
catalogá-la sequer como instituto misto[8].
Indubitável, pois, que na desapropriação
inexiste qualquer liame negocial vinculando o expropriante ao proprietário, eis
que há a extinção do direito de propriedade que o expropriado detinha sobre bem
e o surgimento do direito de propriedade do expropriante sobre o mesmo bem.
Assim, é evidente a natureza originária da propriedade imóvel que venha a ser
adquirida.
Dessa premissa surgem alguns importantes
efeitos:
a) A desapropriação pode prosseguir
até mesmo sem que se saiba quem é o proprietário.
b) Ainda que o dono não tenha sido
indenizado, mas terceiro, a transferência operada através da desapropriação é
irreversível.
c) Todos os direitos de reais de
terceiros sobre a coisa passarão a incidir sobre o numerário depositado à ordem
do juízo. Nesse sentido consta nos arts. 31[9]
do Decreto-lei 3.365/1941 (chamado de “lei geral das desapropriações”), e 17 [10]da
Lei 8.257/1991
(regula a expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de
plantas psicotrópicas).
3. Modalidades de desapropriação:
De início, exsurge em nosso ordenamento
a desapropriação clássica ou ordinária, em que se evidencia a supremacia do interesse público sobre o
particular, realizada mediante indenização prévia, justa e em dinheiro, tendo
como pressupostos a utilidade pública, a necessidade pública, e o interesse
social.
Tem fundamento no art. 5º, XXIV[11],
da CF, sendo que os referidos pressupostos, ou melhor, as hipóteses que se
configuram como de necessidade ou
utilidade pública, ou de interesse social, são definidos na legislação
ordinária. Destacam-se o Decreto-lei nº 3.365/1941, que dispõe sobre os casos
de desapropriação por utilidade pública,
englobando aí os casos de necessidade pública (art. 5º), e a Lei
4.132/1962, que define os casos de desapropriação por interesse social.
A CF ainda contempla a desapropriação extraordinária, que é realizada quando o bem particular,
que está sendo desapropriado, não está cumprindo a sua função social.
Nesta, há indenização, mas não será prévia, nem em dinheiro. Cuida-se de desapropriação
com caráter sancionatório, verificando-se em duas hipóteses.
A primeira delas é a que consta do
art. 182, § 4º, III[12],
da CF, denominada de desapropriação urbanística. Essa forma
expropriatória é prevista como a que pode ser adotada a título de penalização
ao proprietário do solo urbano que não atender a exigência de promover o
adequado aproveitamento de sua propriedade ao plano diretor municipal, estando
o imóvel subutilizado ou não utilizado.
Assim, o Poder Público municipal, mediante lei específica, poderá promover essa
desapropriação, observada a gradação imposta no art. 8.º [13] da
Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), sendo o pagamento da indenização feito
mediante títulos da dívida pública, com prazo de resgate de até dez anos, em
parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e
os juros legais.
A outra
hipótese de desapropriação extraordinária, quando a propriedade não esteja
cumprindo a sua função social, é prevista nos arts. 184[14] a 186
da CF, denominada pela doutrina de desapropriação rural. Tem o objetivo
de permitir a perda da propriedade de imóveis rurais para fins de reforma
agrária. A indenização será paga em títulos da dívida agrária, com cláusula de
preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do
segundo ano de sua
emissão, sendo que as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em
dinheiro. Possui disciplina na Lei 8.629/1993, e ainda na Lei Complementar
76/1993.
Há, por fim, a desapropriação
prevista no art. 243[15]
da CF, chamada de desapropriação confiscatória, por não conferir ao
expropriado direito indenizatório. A perda da propriedade nesse caso tem como
pressuposto a utilização da propriedade para cultura ilegal de plantas
psicotrópicas. Após a expropriação, conforme o procedimento disciplinado na Lei
8.257/91, são essas áreas destinadas a assentamento de colonos com vistas ao
cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos.
Cumpre mencionar, ainda, a nova
figura trazida pelos §§4.º e 5.º[16]
do art. 1.228, CC/2002, que vem sendo
denominada por alguns doutrinadores como desapropriação
judicial, na qual há a perda da propriedade diante posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável
número de pessoas, mediante o pagamento de indenização. Embora não
se confunda com a usucapião, que não requer contrapartida econômica, essa nova
figura também não se identifica por completo com a desapropriação propriamente
dita, que tem como expropriante o Poder Público, passando o bem à dominialidade pública (embora
posteriormente possa ter destinação diversa).
Assim, sua disciplina será dada pelo direito privado, em que pese o seu caráter
coletivo, pois se verificará no interesse particular, dos possuidores.
4. Procedimento expropriatório:
Em linhas gerais, a desapropriação, enquanto
procedimento, possui duas fases, a declaratória e a executiva, sendo que esta última pode ser processada tanto pela via
administrativa/extrajudicial, como pela via judicial.
A fase declaratória se
consubstancia na indicação da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse
social do bem a ser expropriado. Há,
assim, uma manifestação compulsória de vontade do Poder Público, submetendo
determinado bem ao regime de expropriação.
Os efeitos jurídicos da declaração de
utilidade pública e interesse social são três: o direito de as autoridades expropriantes penetrarem no imóvel, mas que
não se confunde com a imissão provisória na posse (artigo 7.º do Dec.-lei n.
3.365/1941); a fixação do estado do bem, incluindo as benfeitorias nele
existentes, o que gera efeitos no cálculo de indenização e o início da contagem
do prazo de caducidade da declaração.
Já na fase executória, serão adotadas medidas
necessárias à implementação da desapropriação, visando à aquisição
do bem pelo Poder Público. Havendo concordância do proprietário sobre o
valor da desapropriação, o procedimento se encerrará na via
administrativa/extrajudicial. Entretanto, de regra, há o prolongamento pela fase judicial,
através de ação movida pelo Estado em face do proprietário.
Nesta ação, portanto,
discutir-se-á
a justa indenização. É possível que durante o seu curso o juiz conceda a imissão
provisória na posse (art. 15[17] do
Decreto-lei 3.365/1941), quando for o caso.
Interessa, por fim, destacar que pode haver a desapropriação
indireta, quando o Poder
Público deixa de observar o procedimento legal, administrativo ou judicial,
ocupando o bem em caráter definitivo. Caberá ao proprietário, se não o impedir
no momento oportuno, deixando que a Administração lhe dê destinação pública,
pleitear a indenização por perdas e danos, que corresponderá à justa
indenização da desapropriação legal.
5. Momento consumativo da
desapropriação:
Vista a extensão do instituto,
observa-se que para
definir o momento da consumação da desapropriação, e conseqüente aquisição da
propriedade, surgiram várias posições doutrinárias e jurisprudenciais, as quais
defendiam que ocorria a consumação:
a) Pelo decreto
declaratório da utilidade pública;
b) Com a expedição do
mandado de imissão na posse;
c) Pela sentença;
d) Com o registro da
sentença no Cartório de Imóveis;
e) Com o pagamento da
indenização.
Moraes
Salles[18]
esclarece que essa diversidade de entendimentos originou-se da má redação do
Decreto 4.956/1903, que regulava a matéria antes do advento do Decreto-lei
3.365/1941.
Segundo
o citado autor, Ruy Barbosa entendia que, embora a aprovação das plantas não
cessasse a propriedade em todos os seus elementos, já implicava na
indisponibilidade jurídica sobre o bem. Todavia, a desapropriação se
concretizava no momento em que era editado o decreto de aprovação dos planos e
plantas relativos às obras que seriam executadas pelo Poder Público ou por seus
concessionários.
Entretanto,
o princípio da previedade da indenização, que esteve presente em todas as
nossas constituições, revelava que o decreto de aprovação não poderia importar
em desapropriação. Ademais, essa declaração do Poder Público é apenas ato-condição
que precede à transferência do bem[19],
não tendo qualquer efeito sobre o direito de propriedade, tanto que, se o
processo expropriatório parasse nessa fase, deixando caducar o decreto
expropriatório, não haveria desapropriação. Isto porque poderiam desaparecer os
motivos que embasaram o decreto em questão.
Há
também as correntes que buscaram observar a consumação dentro do processo
judicial, no caso de não haver acordo.
Para
os que consideram haver a consumação com a imissão na posse, diz-se que somente
com tal ato despontaria para o expropriante o domínio do bem expropriado,
aperfeiçoando-se ou complementando-se. Referem-se à imissão definitiva do art.
29[20]
do Decreto-lei 3.365/1941. Todavia, refuta-se tal doutrina ao argumento de que
o domínio é antecedente à posse, a não ser em casos excepcionais, como no
usucapião. Para a maioria, o elemento posse é irrelevante para fixar o momento
da perda da propriedade[21].
De fato, posse e propriedade são institutos absolutamente distintos.
Dentre
os que entendem que é a sentença que transfere o domínio, cita-se Eurico Sodré
e Manoel de Oliveira Franco Sobrinho[22].
Aquele defendia tal posição por ser a sentença de adjudicação que permitiria a
extração da respectiva carta a ser transcrita no registro de imóveis, meio pelo
qual se operava a tradição solene. Todavia, o referido autor entendia que a
desapropriação era modo derivado de aquisição da propriedade.
Quanto
à corrente que atribui a consumação à transcrição da sentença ou acordo no
registro competente, foi adotada por Pontes de Miranda e Calmon de Passos[23].
Todavia, sendo a desapropriação um modo originário de aquisição, não há que se
subordinar à transcrição do título translativo, seja sentença ou acordo, posto
que a transcrição é modo derivado de aquisição da propriedade, reclamando uma relação de
causalidade, representada por um fato jurídico, entre o adquirente e o
alienante.
Por fim, resta a posição hoje aceita pela
ampla maioria da doutrina, que tem como momento consumativo da desapropriação o
pagamento da indenização.
Sustenta-se
que é o pagamento da indenização que dá ensejo à consumação da desapropriação,
acarretando a aquisição da propriedade pelo expropriante e a perda pelo
expropriado[24].
Afirma
Moraes Salles que há a consumação da desapropriação com o pagamento ou o
depósito judicial da indenização fixada pela sentença ou estabelecida em acordo[25].
Impende
ressaltar que o pagamento se refere ao valor fixado na sentença do art. 24[26]
do Decreto-lei 3.365/1941, pois somente pela justa indenização há a
substituição do bem no patrimônio do expropriando, o que demarca precisamente
o momento em que a desapropriação se consuma[27].
Ressalta-se,
ainda, que mesmo quando há acordo na fase administrativa da desapropriação,
dispensando o ajuizamento do feito expropriatório, esse acordo versará
unicamente sobre o valor da indenização a ser paga ao expropriando e não sobre
a desapropriação, que é sempre ato unilateral da Administração e, portanto,
compulsório. Apenas será consubstanciado em escritura pública (se o bem
desapropriado for imóvel de valor superior ao estabelecido no art. 108 do
CC/2002), mas essa escritura pública não será “desapropriação amigável”,
e sim composição amigável sobre o preço[28].
A
indenização assume tamanha relevância face ao dispositivo constitucional que
reza: “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade
ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização
em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição” (art.
5.º, XXIV). Nos exatos termos do
referido dispositivo, não pode haver desapropriação sem o pagamento prévio da
justa indenização ao expropriado.
Esse
entendimento se aplica, então, as hipóteses em que há uma indenização, quais
sejam as desapropriações clássica/ordinária e extraordinária.
Já
para a desapropriação confiscatória (art. 243 da CF/88), que tem como uma de
suas características não
comportar indenização, sua consumação resta explícita no art. 15[29]
da Lei 8.257/1991, havendo a incorporação ao patrimônio da União após o
trânsito em julgado da sentença no procedimento judicial estabelecido na
referida Lei. Todavia, a doutrina ressalva que, embora o art. 243 se refira à
“expropriação”, na verdade essa hipótese cuida-se de verdadeiro confisco
e não de desapropriação[30].
Quanto à desapropriação
indireta, leciona Maria Sylvia que o que ocorre nessa hipótese é, na realidade,
a afetação do bem. Tendo em conta que a simples afetação do bem a um fim
público não constitui forma de transferência da propriedade, também deve haver
a indenização para que se consume a transferência do imóvel. Isto porque, há a
aplicação analógica do art. 35[31]do
Decreto-lei 3.365/1941, pelo que, uma vez dada a destinação pública ao imóvel,
com sua conseqüente incorporação, este não poderá ser objeto de reivindicação,
cabendo ao particular pleitear a indenização. Entretanto, se não o faz em tempo hábil, verificando-se a
prescrição, restará ao Poder Público regularizar a propriedade pela usucapião[32].
Afirma a referida autora: “O
que ocorre, com a desapropriação indireta, é, na realidade, a afetação, assim
entendido ‘o fato ou a manifestação de vontade do poder público, em virtude do
que a coisa fica incorporada ao uso e gozo da comunidade’ (cf. Marienhoff,
1960:152-153); acrescente-se que se trata de afetação ilícita, porque atinge
bem pertencente a particular; lícita é apenas a afetação que alcança bens já
integrados no patrimônio público, na qualidade de bens dominicais, para
passá-los à categoria de uso comum do povo ou de uso especial”[33].
6. Registro do Imóvel Expropriado:
A transcrição é forma derivada de
aquisição da propriedade imobiliária, por meio da publicidade do ato
translativo junto ao Registro de Imóveis.
Como visto, a extração da carta de
sentença de desapropriação é instrumento hábil para se efetuar a transcrição no
registro de imóveis. Também a escritura é título hábil a transcrição da
propriedade no caso do acordo entre as partes.
Porém, por se entender que a
desapropriação é um modo originário de aquisição da propriedade, esta se
efetiva independentemente da regularização no registro de imóveis.
Todavia, a
transcrição é levada a efeito, segundo Serpa Lopes e Seabra Fagundes, para que
se dê maior publicidade à desapropriação, haja continuidade do registro, fique
constando do Registro de Imóveis a extinção da propriedade anterior e se
cientifique - a todos a que possa interessar - o término dos direitos reais
incompatíveis com a desapropriação[34].
Raimundo Viana[35]
igualmente assevera que, na desapropriação, “a finalidade desse registro é
muito mais para documentar a saída do bem do domínio privado, do que a
testificação da aquisição ou o momento da consumação desta. (...) apenas
para evitar negócios irregulares envolvendo o bem, com possibilidade de sérios
prejuízos para terceiros de boa-fé”.
Assim, consumada
a expropriação pelo pagamento da indenização, cabe ao expropriante regularizar
o registro do imóvel expropriado, cuidando-se, portanto, de momentos distintos,
sendo esta regularização de grande utilidade, mas não essencial à
desapropriação.
7. Conclusão:
O direito de
propriedade é garantia fundamental do homem (art. 5.º da CF/88), todavia,
passível da interferência do Estado ante os
reclamos de interesse público, o que pode ocorrer através da desapropriação,
forma mais drástica de intervenção.
Através do respectivo procedimento legal, regido pelo Direito
Constitucional-Administrativo, o Estado pode impor a desapropriação, visando ao sacrifício total, por justa causa,
de determinado direito patrimonial, o que implica na aquisição deste pelo Poder
Público, por intermédio de prévia e justa indenização, com as ressalvas
constitucionais expressas.
Considerando que na desapropriação
inexiste qualquer liame negocial vinculando o expropriante ao proprietário, eis
que há a extinção do direito de propriedade que o expropriado detinha sobre bem
e o surgimento do direito de propriedade do expropriante sobre o mesmo bem,
caracteriza-se como causa originária de aquisição da propriedade imóvel pelo
Poder Público.
Dentre
as várias correntes que buscaram definir o momento da consumação da
desapropriação,
a posição hoje aceita pela ampla maioria da doutrina vê o pagamento da
indenização como o momento em que
o
bem passará à dominialidade pública, perdendo sua categoria de bem privado.
Para
a desapropriação confiscatória (art. 243 da CF/88), que não comporta indenização, sua consumação resta
explícita no art. 15 da Lei 8.257/1991, havendo a incorporação ao patrimônio da
União após o transito em julgado da sentença no procedimento judicial
estabelecido na referida Lei.
Já quando há desapropriação indireta, ocorre, na
realidade, a afetação ilícita do bem, o que não constitui forma de
transferência da propriedade, pelo que deve haver a indenização para que se
consume a aquisição da propriedade, sendo que caberá ao particular pleitear a
indenização. Se não o fizer em tempo hábil, verificando-se a prescrição,
restará ao Poder Público regularizar a propriedade pela usucapião.
Por fim, há que
se distinguir o momento consumativo da desapropriação e regularização do
registro do imóvel, haja vista ser a desapropriação um modo originário de
aquisição da propriedade, se efetivando independentemente desta regularização,
que, entretanto, é de grande utilidade, mas não essencial à desapropriação.
8. Referências bibliográficas:
CARVALHO
FILHO, José dos Santos. Manual
de Direito Administrativo. 12.ª ed. rev., amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005.
CASTRO, Mônica. A
Desapropriação Judicial no Novo Código Civil. Revista Síntese de Direito
Civil e Processual Civil nº 19 - SET-OUT/2002, pág. 145.
COSTA, Maria Isabel
Pereira da. A transferência do domínio do bem imóvel para o poder
expropriante no processo judicial. Revista AJURIS n.º 47 - 1989, pág. 142.
DI PIETRO, Maria
Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16.ª ed. São Paulo:
Atlas, 2003.
FREITAS,
Juarez. Estudos de Direito Administrativo. 2.ª Ed. São
Paulo: Malheiros, 1995.
PASSOS, J. J. Calmon
de. A Transferência da Propriedade para o Domínio do Expropriante no Curso
da Ação de Desapropriação. Revista Brasileira de Direito Processual.
Vol. 31 – 1.º Bim. de 1982, pág. 63.
SALLES, José Carlos
de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 4.ª
ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000.
SPITZCOVSKY, Celso. Direito
Administrativo. 4.ª ed. São Paulo: Ed. Paloma, 2003.
VIANA, Raimundo. Do
Registro na Desapropriação. Revista Forense. Vol. 298 – Abril/Junho
de 1987, pág. 373.
[1]“Art. 5º. Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
.........................................................
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.
[2] “Art. 1228. O proprietário tem a
faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a
fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas“.
[3] Embora não conhecessem o instituto
tal como hoje se apresente, ressalta José Carlos de Moraes Salles em: A
Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 4.ª ed. rev., atual.
e amp. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p.61.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual
de Direito Administrativo. 12.ª ed. rev., amp. e atual. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, pg. 731.
[5] FREITAS, Juarez. Estudos de Direito Administrativo. 2.ª Ed. São
Paulo: Malheiros, 1995, pg. 84.
[6] Cf. voto de Moreira Alves no RE
94.580-RS, onde aborda o caráter originário da aquisição por usucapião.
[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob.cit.,
pg. 741.
[8] FREITAS, Juarez. Ob. Cit., pg. 75.
[9] “Art. 31. Ficam sub-rogados no
preço quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado”.
[10] “Art. 17. A expropriação de que
trata este lei prevalecerá sobre direitos reais de garantia, não se admitindo
embargos de terceiro, fundados em dívida hipotecária, anticrética ou
pignoratícia”.
[11]
“XXIV-A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização
em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.
[12] “§ 4º. É facultado ao Poder
Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano
diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano
não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos
da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com
prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas,
assegurados o valor real da indenização e os juros legais”. (G.n)
[13] “Art. 8º Decorridos cinco
anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a
obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá
proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida
pública”. (G.n)
[14] “Art. 184. Compete à União
desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural
que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com
cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos,
a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§ 1º. As
benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
§ 2º. O decreto
que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária,
autoriza a União a propor a ação de desapropriação.
(...)”. (G.n)
[15] “Art. 243. As glebas de qualquer
região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas
psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas
ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e
medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo
de outras sanções previstas em lei”. (G.n)
[16]“§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa
se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de
boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela
houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados
pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa
indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título
para o registro do imóvel em nome dos possuidores”.
[17] “Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia
arbitrada de conformidade com o artigo 685 do Código de Processo Civil, o juiz
mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens”. (OBS.: Atualmente, arts. 826 a 838 do CPC/1973)
[18] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob.
Cit., p. 511.
[19] Hely Lopes apud COSTA, Maria
Isabel Pereira da. A transferência do domínio do bem imóvel para o poder
expropriante no processo judicial. Revista AJURIS n.º 47 - 1989, pág. 146.
[20] “Art.29. Efetuado o pagamento ou
a consignação, expedir-se-á, em favor do expropriante, mandado de imissão de
posse, valendo a sentença como título hábil para a transcrição no registro
de imóveis”.(G.n.)
[21] COSTA, Maria Isabel Pereira da. Ob.
Cit., p. 149/150.
[22] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob.
Cit., p. 506/507 e 518, respectivamente.
[23] A Transferência da Propriedade para
o Domínio do Expropriante no Curso da Ação de Desapropriação. Revista Brasileira de Direito Processual. Vol. 31 –
1.º Bim. de 1982, p. 63.
[24] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob.cit.,
p. 765.
[25] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob.
Cit., p. 520.
[26] “Art. 24. Na audiência de
instrução e julgamento proceder-se-á na conformidade do Código de Processo
Civil. Encerrado o debate, o juiz proferirá sentença fixando o preço da
indenização.
Parágrafo único Se não se julgar habilitado a decidir,
o juiz designará desde logo outra audiência que se realizará dentro de dez dias
a fim de publicar a sentença”.
[27] Ebert Chamoun apud SALLES,
José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 515.
[28] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob.
Cit., p. 479.
[29]
“Art. 15. Transitada em julgado a sentença
expropriatório, o imóvel será incorporado ao patrimônio da União.
Parágrafo
único. Se a gleba expropriada nos termos desta lei, após o trânsito em julgado
da sentença, não puder ter em cento e vinte dias a destinação prevista no
artigo 1º, ficará incorporada ao patrimônio da União, reservada, até que
sobrevenham as condições necessárias àquela utilização “.
[30] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob.
Cit., p. 89; e DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella. Direito Administrativo. 16.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 167.
[31] “Art. 35. Os bens expropriados,
uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação,
ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação,
julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos”.
[32] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob.
Cit.,
p. 178.
[33] Idem.
[34] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob.
Cit., p. 523.
[35] “Do Registro na
Desapropriação”. RF 298/373.
Fonte: www.jfrn.gov.br/institucional/.../doutrina223.doc
Postado por: Sancho Neto.
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