Jones Figueirêdo Alves.
A
meação constitui a metade do acervo patrimonial atribuída ao cônjuge ou
companheiro em partilha dos bens adquiridos, que se efetiva ao tempo da
união desfeita. Mas quando se trate de duplicidade de células
familiares existentes por relações paralelas, caso é o de a partição do
patrimônio observar a ocorrência de entidades familiares simultâneas. Na
hipótese, a “meação” transmuda-se em “triação”, ante o reconhecimento
judicial das uniões dúplices, para os efeitos da partilha dos bens.
Neste
sentido é a decisão unânime proferida pela 5ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça de Pernambuco, onde em relatoria do desembargador JOSÉ
FERNANDES DE LEMOS, consagrou-se a possibilidade da triação, mormente
que as duas uniões afetivas foram mantidas pelo varão de maneira pública
e ostensiva, com o conhecimento recíproco das companheiras. (Apel.
Cível nº 296.862-5).
O DIÁRIO divulgou o julgamento, em matéria veiculada quinta-feira passada (16.01.13).
Expressou
Fernandes de Lemos, em seu voto: “No caso em análise, há que se atentar
para o fato evidente de que, se o varão esteve no vértice de uma
relação angular com duas mulheres, duas casas e duas proles, preenchendo
em ambos os núcleos o papel de marido, de provedor e de pai, é que
cultivava a compreensão pessoal de que podia integrar duas famílias, e,
no seu íntimo, nutria a aberta intenção de fazê-lo”.
A
questão posta em julgamento teve o desate meritório lúcido e pontual,
com a precisão cirúrgica de quem admite que a vida, por si mesma, produz
o fato jurídico, antes que a própria lei o expresse e o reconheça.
Afirmou o relator, com a devida reflexão:
“Tais
circunstâncias, se analisadas com a devida isenção de ânimo, demonstram
o caráter familiar da união amorosa mantida pela autora-apelante, que
em nada se assemelha às relações clandestinas e furtivas, de finalidade
meramente libidinosa. Assim, configurando-se a formação de autênticos
núcleos familiares simultâneos, não há razão jurídica para que se exclua
um deles da tutela estatal, desmerecendo-o e relegando-o à plena
desconsideração, ou, quando muito, à tutela do direito obrigacional.”
E
ponderou: “Aliás, adotando-se a posição contrária, ou seja, a de que a
duplicidade de relacionamentos afetivos acarreta a perda da affectio familiae
e a quebra do dever de lealdade, seria forçoso concluir que tal perda e
tal quebra não se restringiriam a uma das relações apenas, mas se
estenderiam a todas. No caso dos autos, considerando ilegítima a união
afetiva da autora-apelante, teríamos de admitir, por identidade de
fundamentos, descaracterizada também a relação do réu-apelado com sua
outra companheira, ao menos durante o período em que verificada a
simultaneidade, o que nos conduziria ao absurdo de, diante de duas
famílias consolidadas no plano dos fatos, não conferir o devido
reconhecimento jurídico a nenhuma delas. Por outro lado, tutelar apenas
um dos relacionamentos, em desprezo do outro, implicaria clara ofensa à
isonomia, por conferir tratamento distinto a situações substancialmente
idênticas.”
Adiantou,
ainda, FERNANDES LEMOS, que “a decisão mais consentânea com o direito e
com a justiça é a de reconhecer, no caso concreto, os efeitos jurídicos
das relações paralelas de afeto, sob o manto do direito de família. Tal
posição, aliás, continua e avança na trilha construída pela nossa
jurisprudência, sempre preocupada em proteger os envolvidos em casos
como o dos autos, ainda que através da adaptação de institutos próprios
do direito obrigacional, a exemplo do direito à partilha do patrimônio
adquirido pelo esforço comum (Súmula nº 380 do STF) ou da indenização
por serviços domésticos prestados”. A decisão desafia recurso aos
tribunais superiores.
Não
há negar, todavia, a “triação” dos bens como fato jurídico de relevo,
diante da realidade do direito de família construído pela jurisprudência
mais avançada.
A
expressão “triação” foi cunhada em decisão do des. Rui Portanova
(2005), quando demonstrada a existência de outra união estável em
período concomitante a uma primeira união estável. Admitiu-se, então,
que os bens adquiridos na constância das uniões dúplices fossem partilhados entre as companheiras e o “de cujus”. (TJRS, 8ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70011258605,
j.em 25/08/2005). Naquele mesmo ano, o tribunal gaúcho já houvera
reconhecido efeitos jurídicos às uniões paralelas. (TJRS – 7ª Câmara
Cível, Apelação Cível nº 70010787398, Sétima Câmara Cível, Relator:
Maria Berenice Dias, julgado em 27/04/2005).
Noutro ponto, convém assentar a proclamação de Clicério Bezerra e Silva, Juiz de Direito da 1ª Vara de Família do Recife, no pergaminho de sentença por ele proferida:
“(…)
Segue-se o adiantar da hora pelo pleno reconhecimento das uniões
paralelas. A monogamia não pode ser e, de fato, não é valor impeditivo
ao reconhecimento de direitos. Fosse assim, não se reconheceria a figura
do casamento putativo, que, não obstante a sua nulidade, produz efeitos
jurídicos, nos termos do art. 1.561, do Código Civil”.
A
propósito, nessa linha tem a doutrina majoritária se posicionado, no
sentido de quando preenchidos os requisitos da união estável
(ostentabilidade, publicidade, ânimo de constituir família), e presente a
boa-fé de um dos parceiros, serem aplicáveis por analogia as regras do
casamento putativo (cf. Álvaro Villaça Azevedo, Flávio Tartuce,
Francisco José Cahali, José Fernando Simão, Rodrigo da Cunha Pereira e
Zeno Veloso).
Para
além disso, edifica-se uma nova discussão sobre a natureza jurídica do
concubinato (relações não eventuais de pessoas impedidas de casar),
referido pelo art. 1.727 do Código Civil, a sabê-lo tipificado ou não na
moldura de uma entidade familiar (atípica), quando presentes os mesmos
requisitos da união estável e sob a égide do valor jurídico da
afetividade (“affectio maritalis”). No ponto, “a jurisprudência do STJ e do STF é sólida em não reconhecer como união
estável a relação concubinária não eventual, simultânea ao casamento,
quando não estiver provada a separação de fato ou de direito do parceiro
casado”. (STJ – 4ª Turma, REsp. 1096539/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 27/03/2012).
Certo
é, porém, que tendo o núcleo familiar contemporâneo por escopo a busca
da realização dos seus integrantes, vale dizer a busca da felicidade,
(REsp 1157273/ RN) o paralelismo de uniões afetivas (poliamorismo) deve
ser encarado, no plano existencial dos fatos, sob a égide de famílias
consolidadas a merecerem, umas e outras, a tutela estatal, como acentuou
a decisão do TJPE.
A
pedra de toque da consolidação concorrente, a toda evidência, atrai o
reconhecimento de uniões estáveis simultâneas e a devida proteção
jurídica de ambas.
Assim, o direito não deve pretender juridicamente desconstituir fatos da vida que se sobrepõem iniludíveis.
Autor:
JONES FIGUEIRÊDO ALVES
– O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de
Pernambuco. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor
de obras jurídicas de direito civil e processo civil. Integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas (APLJ).
Postado por: Sancho Neto.
Fonte: Atualidades do Direito.
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