Por Vitor Frederico Kümpel*
Dando
prosseguimento à nossa discussão sobre o usucapião tabular, dentro de
suas peculiaridades e benefícios concedidos ao cidadão, abordaremos hoje
a sua função sócio econômica no ordenamento a partir do vetor da
segurança jurídica até o primado da circulação de riqueza.
A
estrutura formal dos sistemas de registro, envolvendo a certeza, a
absoluta previsibilidade, bem como a veracidade, vem ao longo do tempo
impactando de forma particular a economia. Nesse sentido, dentro do
cenário fundiário brasileiro, é fundamental o estudo de alternativas que
priorizem a regularização dos imóveis e por via de consequências dos
registros, diferenciando, por conseguinte, a posse da propriedade dentro
de um Estado Democrático de Direito. Para tanto, tem papel peculiar o
instituto do usucapião tabular, na medida em que o seu objeto é a
regularização formal da propriedade, impactando, portanto, a vida
econômica e social do cidadão.
Conforme discutido no artigo anterior, o parágrafo único do art. 1.242 do CC,
ao reduzir o prazo do usucapião ordinário de dez para cinco anos, se o
imóvel foi adquirido onerosamente e registrado, mas, posteriormente,
teve seu registro cancelado, atualiza o antigo instituto do usucapião na
medida em que simplesmente visava tornar proprietário o possuidor
esbulhador . O disposto acima mencionado passou objetivar regularizar
uma situação de alguém que tinha um titulo dominial formalmente
insubsistente. Desse modo, o instituto se adapta à nova realidade e
passa a proteger muito mais do que a tutela da posse, uma vez que atua
em benefício da regularização formal dos imóveis dentro da tábula
registral. Ganha, portanto, novos contornos, o que, inclusive, justifica
a redução considerável do prazo para o seu aperfeiçoamento. Nessa linha
de raciocínio o prazo poderia ser inclusive inferior a cinco anos, já
que houve uma aquisição onerosa, estando, portanto, em consonância com o
consagrado princípio da vedação ao enriquecimento sem causa.
O
novo instituto, porém, não deixa de considerar os requisitos da boa-fé e
do justo título do possuidor, em absoluta observância da função social
por determinar investimentos de interesse social e econômico no imóvel,
procedendo, portanto, ao cumprimento do consagrado artigo 5º, XXIII, da CF/88.
Na
perspectiva de regularização da propriedade e de resolver o problema
daquele que não sabia, e não tinha como saber, do vício presente no
título, o CC se valeu da teoria da aparência, recepcionada no
ordenamento jurídico em diversos artigos, dentre os quais o aclamado
artigo 1.817. Logo, para a caracterização da proteção dispensada à
aparência do direito consideram-se os requisitos subjetivos da boa-fé e
do erro escusável que devem atuar inseparavelmente conjugados com os
seguintes requisitos objetivos: (i) situação de fato cercada de
circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora uma
situação de direito, (ii) situação de fato segundo a ordem geral e
normal das coisas e (iii) que o titular aparente se apresente aos olhos
de todos como o legítimo titular.
Desse
modo, aplica-se a teoria da aparência na venda a "non domino", em que
embora o transmitente não seja o dono da coisa, o adquirente está na
convicção de que trata com o proprietário, dado que o titulo é
juridicamente perfeito e capaz de iludir qualquer indivíduo em
semelhante situação. Desse modo, o elemento pretensamente racional,
lógico, dá lugar àquilo que se apresenta como irracional, como é o caso
da aparência, pela incidência de valores mais importantes no sistema
jurídico, e da segurança das próprias relações jurídicas1. Assim, para a
conversão em realidade do direito de propriedade, resta a demonstração
de titularidade formalizada por meio do registro. Para tanto, a teoria
da aparência aliar-se-á à presunção de veracidade dos registros
públicos.
Há
duas correntes distintas e opostas quanto à presunção de veracidade do
registro. Os defensores da presunção relativa se apoiam no fato de que
determinados vícios do título podem gerar a invalidade do registro e,
portanto, o seu cancelamento. Já quem defende a presunção absoluta, tem
por base a complexidade da atividade, somada à publicidade passiva, de
modo a privilegiar o adquirente cauteloso e a garantir que o registro
possua maior eficiência, bem como a atividade registral em seu todo. A
teoria da presunção absoluta de veracidade dos registros públicos é
adotada pelo direito alemão, por exemplo, tendo o Brasil se afastado
desta última teoria, na medida em que a grande dimensão territorial
exige flexibilidade do modelo, o que em nada compromete a segurança.
O
ordenamento jurídico brasileiro, portanto, não prevê a presunção
absoluta, como regra, podendo a veracidade do registro oscilar, quando
houver nulidade ou anulabilidade do título que deu origem ao registro,
ou mesmo defeito de inscrição ou fraude na execução – hipóteses
previstas no artigo 216 da lei 6.015/73.
Nesse
sentido, dentro do contexto do importante papel dos registros públicos
na fundamentação econômica dos direitos de propriedade, o registrador
espanhol Fernando Méndez González destaca que "independente do sistema
registral escolhido por um dado país, ele deve garantir os direitos do
adquirente e dar segurança jurídica para que as transações ocorram com
previsibilidade e certeza". Desse modo, afirma que um bom sistema de
registro de direitos possui mecanismos que assimilam informações
relevantes, como garantias reais que assegurem a titularidade do bem2.
Nesse
contexto, o grande objetivo do usucapião tabular é fazer com que a
titularidade registral coincida com a verdade social, em consonância,
ainda, com o artigo 1.247 do CC. Assim, prestigia, sobremaneira, o
princípio da boa-fé e a lídima circulação de riquezas. A aparência deve
coincidir com a realidade do registro, exatamente nas hipóteses em que a
dignidade da pessoa humana resguarda-se no amplo limite da inserção
social.
Por
esse motivo, o cancelamento do registro, requisito previsto para
aplicação do instituto do usucapião tabular, deve ser sempre motivo de
questionamento, a fim de que seja possível aferir com precisão o momento
em que houve o erro e, tembém, quem deve ser responsabilizado. O
questionamento adequado a respeito do cancelamento do registro permitirá
que apenas o indivíduo que agiu de má-fé cubra os prejuízos sofridos
pelos titulares de boa-fé.
Em
julgamento de recurso especial3, o STJ reconheceu a aplicação do
usucapião tabular também para o caso no qual a matrícula não havia sido
cancelada, embora estivesse bloqueada há mais de doze anos. Foi
proferido o entendimento no sentido de que, mesmo a lei prevendo como
pré-requisito para a aplicação do instituto o cancelamento do registro
do imóvel, deve-se considerar o longo prazo durante o qual a matrícula
esteve bloqueada, desse modo a situação pode ser equiparada ao
cancelamento. O entendimento da Terceira Turma foi contrário à
determinação proferida pelo magistrado de primeira instância, que havia
indeferido a petição inicial dizendo ser indispensável o requisito de
cancelamento do registro.
No
STJ o recurso foi interposto pelos compradores do imóvel que, tendo
realizado o registro em 1996, viram este ser bloqueado posteriormente
por decisão judicial. Interessante perceber que o STJ reconheceu o
interesse de agir dos compradores/proprietários de usucapião tabular,
priorizando assim o interesse e o direito do comprador, ao invés de
seguir a letra fria da lei.
A
prioridade é, portanto, garantir um equilíbrio entre a estabilidade
necessária para aplicação do instituto do usucapião, e a preservação do
direito do adquirente de boa-fé que, por motivos alheios teve seu
registro cancelado ou, como vimos, bloqueado por tempo indeterminado.
Desse modo, o usucapião tabular esta apto a proporcionar grandes
benesses à questão fundiária brasileira. Dado que, como afirmou Sérgio
Jacomino, "a balburdia fundiária, tantas vezes denunciada é um elemento
perturbador da economia e contribui para fragilizar as propriedades e as
garantias de crédito já que os direitos podem se esfarelar de uma hora
para a outra, em decorrência da anulação dos registros".
Neste
sentido, o usucapião tabular é um instituto de extrema valia para o
direito e para economia brasileira, além de via adequada e célere para
proteger o cidadão adquirente de boa-fé. O ordenamento lhe confere a
segurança necessária dentro dos limites da teoria da aparência, aliada à
presunção de veracidade dos registros públicos. E, a prática demonstra
que a avaliação do preciso momento do cancelamento do registro garantirá
a responsabilidade dos prejuízos ao empregador da má-fé. Tudo em um
contexto de amplo fundamento social, primando pela estabilidade e
segurança das relações fundiárias brasileiras, conforme previsto pela
lei maior (art. 184, CF). Um bom sistema de registros públicos, que
promova a segurança jurídica e a certeza, é de valia inestimável ao
desenvolvimento econômico e social.
____________
* Vitor Frederico Kümpel
é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito pela USP e
coordenador da pós-graduação em Direito Notarial e Registral Imobiliário
na EPD – Escola Paulista de Direito.
1 – KÜMPEL, V. F. Teoria da aparência no Código Civil de 2002. São Paulo: Método. p. 43.
2 - http://www.cnj.jus.br/noticias/noticias/cnj/16217:para-especialistas-registros-publicos-confiaveis-tem-impacto-na-economia. Acessado em 05.12.2013
3 – REsp nº 1133451. Julgada pela Terceira Turma. Ministra Relatora: Nancy Andrighi. Data do julgamento: 27.03.2012.
Fonte: Migalhas | 21/01/14
Publicação: Portal do RI (Registro de Imóveis) | O Portal das informações notariais, registrais e imobiliárias!
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Postado por: Sancho Neto. Of.s.
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