quinta-feira, 28 de março de 2013

Algumas linhas sobre a prenotação – Parte I

Flauzilino Araújo dos Santos
BDI nº 19 - ano: 2012 - (Boletim Cartorário)
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A PRENOTAÇÃO
Visando proteger o tráfego imobiliário do qual depende consideravelmente o desenvolvimento do país, o legislador estabeleceu o prazo de trinta dias para o registrador processar todos os atos pertinentes à efetivação do registro da propriedade imóvel, que vão da recepção do título ao registro da transmissão, oneração ou atos averbatórios. Nesse sentido expressamente dispõe o artigo 188 da Lei de Registros Públicos.
Art. 188. Protocolizado o título, proceder-se-á ao registro, dentro do prazo de trinta dias, salvo nos casos previstos nos artigos seguintes.
Essa gama de atividades não poderia ficar a livre critério do registrador, o que levaria a arbitrariedades e privilégios, com evidente ofensa à isonomia e bem por isso o legislador preventivamente fixou critério determinante, que resulta da ordem cronológica da apresentação do título e seu lançamento no Livro 1 - Protocolo, fixando assim a prioridade do título, à vista do número de ordem do protocolo, cujo número é dado no momento de entrada do título, por rigorosa numeração sucessiva. Assim é que dispõe o art. 182:
Art. 182. Todos os títulos tomarão, no Protocolo, o número de ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação.
Desde logo saliente-se que no momento da apresentação de um título na Serventia com pedido de registro, independentemente do estudo desse título ou de quaisquer exigências fiscais ou de dúvida, nos expressos termos do artigo 12, segue-se incontinenti o lançamento desse título no Livro 1 - Protocolo, não como opção do registrador, mas em atenção ao enunciado no artigo 174, gerando a partir desse lançamento direitos que terão repercussões externas e internas na transmissão ou oneração do imóvel. Os textos de referidos artigos facilitam o entendimento pela clareza:
Art. 12. Nenhuma exigência fiscal, ou dúvida, obstará a apresentação de um título e o seu lançamento no Protocolo com o respectivo número de ordem, nos casos em que da precedência decorra prioridade de direitos para o apresentante.
Parágrafo Único. Independem de apontamento no Protocolo os títulos apresentados apenas para exame e cálculo dos respectivos emolumentos.
Art. 174. O livro nº 1 - Protocolo - servirá para apontamento de todos os títulos apresentados diariamente, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 12 desta lei.
Permito-me repetir, face ao caráter eminentemente formalista do direito imobiliário registral, que a prenotação de todos os títulos ingressados na Serventia, ressalvados aqueles referidos no parágrafo único do artigo 12 - títulos recebidos para simples exame e cálculo de emolumentos a pedido dos interessados, não é mera opção do registrador, senão integra o elenco de deveres do oficial à publicizar uma situação jurídica que possibilita que os direitos reais sobre imóveis adquiram a plenitude dos efeitos que o ordenamento jurídico lhes concede de acordo com sua natureza, como disposto no artigo 534 do Código Civil que pela prenotação antecipa os efeitos do registro, revelando a transcendência desse instituto:
Art. 534. A transcrição datar-se-á do dia, em que se apresente o título ao oficial do registro, e este o prenotar no protocolo.
Para conceituar prenotação tem autoridade JOSÉ LUIS PÉREZ LASALA: “El asiento de presentación es la expresión formal en el registro del principio de rogación”. Tal é a importância que o jurista portenho dá ao assento de apresentação que ainda assinala: “La finalidade del asiento es hacer constar el momento de la presentación del título en el registro. Para determinar ese momento se consignará la fecha, hora y minuto en que se produce. El asiento ha de hacer-se inmediatamente, en el acto de recibir el título”.(2)
A própria eficácia do princípio da publicidade exige que a informação verbal ou por certidão da matrícula descreva a verdadeira situação jurídica do imóvel pertinente, no momento da consulta, de modo que haja segurança jurídica e o público possa confiar plenamente na informação prestada. Conforme asseverou J. DO AMARAL GURGEL logo após a edição do Decreto nº 18.542/28: “A publicidade é a garantia dos contratantes; é ella que põe a coberto da fraude a boa fé de terceiros, impedindo as transmissões fraudulentas.(3) “
A regra é o interessado apresentar o título objetivando o registro. Exceção é a apresentação do título apenas para exame e cálculo de emolumentos e sempre, repita-se, mediante pedido expresso do apresentante.
A praxe que se estabeleceu da protocolização do título no momento do registro é herança de desvirtuada interpretação de disposições do sistema anterior, corroborada pela incômoda (?) exclusividade da escrituração do protocolo pessoalmente pelo oficial(4) que era determinada pelo artigo 201 do Decreto 4.857/39, com raríssimas exceções. A Lei 6.015/73, a exemplo do regulamento anterior, em nenhum momento sequer sugere aquela prática, pelo contrário, na opinião de AFRÂNIO CARVALHO “apresentado ao cartório o título, entra este imediatamente no protocolo”.(5)
Esse costume contra legem cria uma situação de insegurança jurídica incompatível com a instituição registral e com os importantes efeitos que resultam do lançamento do título no Protocolo. É o que se pode notar na preocupação de WALDEMAR LOUREIRO que faz a seguinte advertência: “E porque a prenotação de um título é o ato garantidor da prioridade dêsses direitos, não pode o oficial recusar-se a anotá-lo no protocolo, ainda que o mesmo lhe pareça nulo ou falso, ou não estejam pagos os impostos devidos”.(6)
Logo após entrar em vigor o Código Civil, J. M. DE AZEVEDO MARQUES em comentário ao parágrafo único do artigo 833 assim se expressava: “É de intuitiva necessidade esse princípio, que impede abusos. ... É o que se chama prenotação.(7) “
Protocolizado assim o título é direito do interessado receber desde logo documento compro-batório da prenotação de seu título onde constem dentre outros dados, o valor do depósito prévio, a data prevista para entrega do título ou para seu comparecimento na Serventia, bem como especialmente o número recebido por esse título no Protocolo e a data do assento.
Merece destaque que face ao princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público, segundo o qual, conforme magistério de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, “desde que a pessoa satisfaça às condições legais, ela faz jus à prestação do serviço, sem qualquer distinção de caráter pessoal”,(8) todos os títulos ingressados na Serventia, quer sejam prenotados ou simplesmente recepcionados para exame e cálculo dos emolumentos, são examinados segundo a precedência, para o que o oficial deve adotar o melhor regime interno atendendo ao disposto no artigo 11 da Lei de Registros Públicos que assim dispõe:
Art. 11. Os oficiais adotarão o melhor regime interno de modo a assegurar às partes a ordem de precedência na apresentação dos seus títulos, estabelecendo-se, sempre, o número de ordem geral.
Ensina CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO que “a igualdade é princípio que visa a duplo objetivo, a saber: de um lado propiciar garantia individual (não é sem razão que se acha insculpido em artigo subordinado à rubrica constitucional “Direitos e Garantias Individuais”) contra perseguições e de outro, tolher favoritismos”.(9)
Bem por isso, com vista a garantir a precedência de exame dos títulos, bem como a assegurar o efetivo controle dos títulos em tramitação e do prazo legal, a E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo instituiu o Livro de Recepção de Títulos.
2. A PRENOTAÇÃO E O TEXTO DO REGISTRO
A publicidade material do registro exige que na escrituração dos atos no Livro 2, aos requisitos formais constantes do art. 176, § 1º, III, da Lei nº 6.015/73, seja somado o do art. 534 do Código Civil, qual seja, a data do dia em que o título foi apresentado ao oficial do registro e este o prenotou no protocolo.
O registro deve estampar a duração dos efeitos das situações jurídicas ali inscritas, pena de permitir diferentes interpretações que não são determinantes de seu conteúdo, limitando dessa forma o campo da segurança jurídica que é produzida pela publicidade registral.
A omissão do número e da data da prenotação no texto do registro na matrícula do imóvel, exige do usuário que estuda um negócio jurídico mediante certidão de inteiro teor da matrícula, outra certidão complementar tendo como fonte o Livro 1 – Protocolo, onde constem o número e a data da prenotação, porque a exteriorização constante da matrícula – realidade registrada, é aparência semi-desconectada da realidade jurídica, tendo-se em conta a retroatividade dos efeitos do registro à data da prenotação.
Isto resulta em uma publicidade parcial, totalmente incompatível com a natureza e os efeitos erga omnes dos direitos reais que exigem a exteriorização continuada e organizada das situações jurídicas publicadas no caderno imobiliário.
Para melhor compreensão do problema, pensemos nas informações prestadas por Oficiais Registradores em requisições judiciais ou administrativas (SRF, INSS) sobre bens imóveis que nos últimos cinco anos foram alienados ou adquiridos por determinada pessoa. Porventura algum oficial recorre ao Livro 1 – Protocolo para prestar essas informações, tomando assim como base a data da prenotação do título que deu causa à transmissão, para o efeito de fixar a data da aquisição ou alienação, face ao efeito retroativo da prenotação, ou são essas informações prestadas unicamente com base nas datas dos registros?
A reflexão proposta nos leva ao encontro de uma situação de caráter mais sério, ao constatarmos que a omissão desse dado, dá origem a que proliferem excessivamente ações e recursos que poderiam ser evitados em seus nascedouros, exatamente porque as postulações, assim como as decisões jurisdicionais, são calcadas nessas informações, no que tange a fixação de termos prescritivos e decadenciais, relembrado que mesmo quando as datas são extraídas diretamente da matrícula, não correspondem à realidade jurídica.
Convencido da clareza e atualidade das disposições do art. 534 do Código Civil, permito-me insistir em definitivo que o texto do registro no Livro 2 deve incluir o número e a data da prenotação do título, cuja simplificação macula o sistema registral.
3. CANCELAMENTO DA PRENOTAÇÃO
O legislador estabeleceu que pelo simples transcurso do tempo cessarão os efeitos da prenotação caso não seja efetivado o registro dentro do lapso de tempo estabelecido por omissão do interessado em atender às exigências legais, salvo exceções legalmente discriminadas (caso de 2ª hipoteca do artigo 189; da dúvida do artigo 198; de loteamento e desmembramento da Lei 6766/79 e do bem de família, face a publicação de editais com prazos para impugnação), conforme dispõe o art. 205:
Art. 205. Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos trinta dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por omissão do interessado em atender às exigências legais.
Flui como consequência inevitável que a exceção a que se refere o artigo 188 permitindo ultrapassar o prazo fixado de trinta dias para o registrador proceder a todos os atos do registro, deve ser interpretada do ponto de vista hermenêutico, de forma estrita, ou seja: essa exceção não pode ser ampliada a outras situações, a não ser àquelas expressamente previstas pela legislação, cabendo, assim, ao intérprete, observar o marco fixado pelo legislador, não podendo ultrapassá-lo.
A despeito de respeitáveis opiniões em contrário, penso que o termo estabelecido pelo artigo 205 é improrrogável e peremptório, cujo prazo se conta a partir da data do assento de apresentação do título no Livro 1 de Protocolo, culminando com a extinção definitiva de seus efeitos jurídicos pela caducidade.
Decorrido o trintídio sem o registro por omissão do interessado em atender as exigências formuladas, deve o oficial cancelar(10) a prenotação?
Minha opinião é de que o oficial não deve cancelar a prenotação, por falta de expressa previsão legal. O lançamento permanece no Protocolo e a extinção de seus efeitos se produz de pleno direito. Analisando a extinção dos efeitos do ato, AUGUSTIN A. GORDILLO em sua obra Tratado de Derecho administrativo assim leciona:
“Por lo demás, debe advertirse que, puesto que lo esencial del acto administrativo es su calidad de producir efectos jurídicos, es sobre éstos que opera la extinción: si por cualquier circunstancia se extinguen definitivamente los efectos jurídicos de un acto, él debe también considerar-se extinguido, desde el punto de vista jurídico, aunque de hecho la materialidad misma del acto no haya sido sometida a tal processo extintivo”.(11)
Cancelar implica atividade ou ação do oficial, como nos casos dos cancelamentos das prenotações quando a dúvida é julgada procedente (art. 203, I) e na impugnação do registro de bem de família (art. 264). Daí o preceito do artigo 248, da Lei de Registros Públicos, sobre o modo de efetuar-se cancelamento:
Art. 248. O cancelamento efetuar-se-á mediante averbação, assinada pelo oficial, seu substituto legal ou escrevente autorizado, e declarará o motivo que o determinou, bem como o título em virtude do qual foi feito.
Sob esse aspecto, no sistema registral anterior, o decreto nº 4.857/39, no art. 288, preceituava que o cancelamento devia ser feito, “mediante certidão escrita na coluna de averbações do livro competente”.
Deve ser ressaltado que decorrido o prazo de trinta dias sem o registro do título, por omissão do interessado em atender as exigências legais,(12) o processo pelo qual cessam os efeitos da prenotação é “automático”, ou seja, “por si mesmo”, de sorte que não há ato de cancelamento da prenotação a ser praticado pelo oficial, senão que simplesmente cessam seus efeitos.
E quais são os efeitos da prenotação?
A prioridade, determinada pelo número de ordem de lançamento do título no Protocolo, assim como a preferência dos direitos reais determinada pela prioridade.
Notas:
(1) Miguel Maria Serpa Lopes, in “Tratado dos registros públicos”, 3ª ed., Freitas Bastos, 1955, v. II, p. 346
(2) José Luis Péres Lasala, “Derecho Inmobiliario Registral”, Ediciones Depalma Buenos Aires, 1965, p. 141
(3) J. do Amaral Gurgel, “Registros Públicos”, Livraria Acadêmica, São Paulo, 1929, p. 21
(4) No antigo regime do Decreto nº 370, de 05-05-1890 (art. 10) e do Decreto nº 18542, de 24-12-1928 (art. 193), a escrituração do protocolo (livro 1) era incumbência exclusiva e pessoal do oficial do Registro, que não podia delegá-la ao seu substituto, mesmo nos impedimentos e ausências ocasionais. Nessas circunstâncias recorria-se à nomeação de um oficial “ad-hoc”.
(5) Afrânio de Carvalho, “Registro de Imóveis”, 2ª ed., Forense, 1977, p. 371
(6) Waldemar Loureiro, “Registro da Propriedade Imóvel”, 5ª ed, Forense, 1957, v. I, p. 42
(7) J. M. de Azevedo Margues, “A Hypotheca”, Casa Espíndola, São Paulo, 1919, p. 98
(8) Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Direito Administrativo”, 8ª ed., Atlas, 1997, p. 87
(9) Celso Antônio Bandeira de Mello, “O conteúdo jurídico do princípio de igualdade”, 2ª ed., RT, 1984, p.30
(10) Cancelar: 1. Riscar, inutilizar (o que está escrito), com traços em cruz ou de outra maneira. 2. Declarar ou dar como nulo, ou sem efeito, cf “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, 2ª ed., Editora Nova Fronteira
(11) Augustin A. Gordillo, “Tratado de Derecho Administrativo”, Tomo 3, capítulo XIII-1, Ediciones Macchi, 1987
(12) Cessam igualmente os efeitos da prenotação no caso da dúvida julgada improcedente, se o interessado por omissão sua, não reapresentar no prazo de trinta dias contados da data do trânsito em julgado da decisão da dúvida, os documentos, com o respectivo mandado ou certidão da sentença para que o oficial proceda ao registro.
* O autor é o 1º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo e Professor de Direito Civil da UNIP.
* Continua na próxima edição. 

Postado por: Sancho Neto.Of.s.
 

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