quinta-feira, 9 de julho de 2009

O bem de família e o registro de imóveis






Introdução:
Origem do instituto, finalidade e aspectos constitucionais
O bem de família é instituto originário do direito norte-americano. Surgiu no estado do Texas, com o chamado Homestead Exemption Act, de 26 de janeiro de 1839, quando, em meio a uma grande crise creditícia, resolveu-se isentar de penhora a pequena propriedade rural, desde que ela fosse destinada à residência do devedor [01].
A finalidade de sua instituição consiste na idéia de se salvaguardar um imóvel, destacado do restante do patrimônio da família e afetado à sua moradia, tornando-o isento da execução por dívidas futuras, salvo as de origem tributária e de taxas de condomínio referentes ao mesmo imóvel.
Na verdade, a sede da proteção que exsurge do instituto do bem de família é indubitavelmente constitucional. Seu escopo primeiro é resguardar a entidade familiar, instituição reputada por nossa Constituição Federal como base de nossa sociedade, e merecedora, pois, da especial proteção do Estado [02]. Vale lembrar, o conceito de família inaugurado pelo sistema constitucional de 1988 foi sensivelmente ampliado, para abarcar não somente aquela proveniente do casamento civil, como também a decorrente de união estável, a monoparental e o casal sem filhos.
Visa, ainda, ao atendimento do desiderato constitucional que eleva a moradia à categoria de direito social [03], incluindo-a entre os chamados direitos de segunda geração [04].
O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento de nosso Estado [05], é outro princípio constitucional atendido, na medida em que se assegura ao devedor que, por mais dívidas que esse tenha, a casa onde mora com sua família estará resguardada, e não se sujeitará à penhora, garantindo-se, assim, um mínimo que lhe permita a existência digna.
Homenageia, por fim, o também constitucional princípio da função social da propriedade [06], pois elege a moradia da entidade familiar, e não o pagamento de dívida, como função social mais relevante a ser cumprida pelo imóvel.


"Espécies" de Bem de Família
Podemos referir duas "espécies", ou "modalidades", de bem de família:
a) bem de família legal, previsto na Lei Federal 8.009, de 1990: trata-se de medida de natureza processual, que exclui o imóvel em que a família reside de constrições judiciais por dívida.
b) bem de família voluntário, previsto nos artigos 1.711 a 1.722, do Código Civil: trata-se de uma afetação feita pelo particular, destinando um imóvel em específico (eventualmente acompanhado de valores mobiliários) à residência da família.
Em ambos os casos, impede-se alienação judicial do imóvel para a satisfação de dívida, o que veda, por exemplo, a instituição de hipoteca sobre imóvel já registrado como bem de família voluntário. No bem legal não se exige que a família seja proprietária exclusiva do imóvel, podendo ser, inclusive, mera possuidora. Já no bem voluntário, a propriedade deve ser plena e, pois, exclusiva para que seja possível a sua instituição.
Como somente o bem de família voluntário tem repercussão no Registro de Imóveis, abordaremos de maneira sucinta o bem de família legal.


Bem de Família Legal
O bem de família legal, previsto na Lei 8.009, de 1990, não tem qualquer repercussão no Registro de Imóveis. Sua constituição independe do registro, operando-se ex vi legis, ou seja, à vista da lei. Por essa exata razão, constituindo o bem de família legal uma garantia inerente à moradia, podemos afirmar que ele se presta melhor a corporificar os mencionados desideratos constitucionais. Sua natureza jurídica é de garantia, de preservação de um patrimônio mínimo, um imóvel no qual possa residir a família. Vejamos o que diz a Lei 8.009/90:
"Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados".
Os óbices legais à constituição da garantia de impenhorabilidade em razão da natureza do bem encontram-se previstas no artigo 2º:
"Art. 2º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos.
Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo".
Já as ressalvas em razão da natureza do crédito exeqüendo encontram-se previstas no artigo 3º, excetuando-se o inciso VI, que refere, ainda, a origem ilícita do bem:
"Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III -- pelo credor de pensão alimentícia;
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação".
É de se frisar a lamentável previsão dos incisos II e V do art. 3.º, vez que ferem de morte a própria razão de ser do instituto, mitigando em muito a efetividade da proteção por ele conferida à entidade familiar. Desse modo, se o imóvel for dado em garantia, fica afastada a impenhorabilidade, podendo o mesmo ser alienado para a satisfação do crédito. Mais uma vez, percebemos como foram eficazmente atendidos os interesses das grandes instituições financeiras, em claro detrimento do cumprimento das finalidades constitucionais do instituto.
O legislador infraconstitucional e a jurisprudência pátria firmaram o entendimento de que, ao financiar o próprio imóvel, ao dá-lo em garantia real e ao figurar como fiador em contrato de locação, o indivíduo estaria abdicando, por manifestação inequívoca de vontade própria, da garantia do bem de família, para a nossa total consternação. É de se perguntar se a dignidade da pessoa humana é direito disponível. Indigna deveria ser, data venia, essa verdadeira infâmia jurídica.
O artigo 4º faz ressalva à hipótese de o devedor, de má-fé, agir de maneira fraudulenta:
"Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.
§ 1º Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.
§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural".
O caput do artigo 5º explicita o conceito de imóvel de residência da família, de que trata o artigo 1º:
"Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.
Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil".
Vemos, assim, que o parágrafo único do artigo 5º estabelece o critério legal para a identificação do bem de família na hipótese de mais de um imóvel se destinar à residência da família: será reputado bem de família o imóvel de menor valor.
O dispositivo em comento delineia, desde já, uma importante conclusão sobre a finalidade de se instituir o bem de família voluntário, que adiantamos: a instituição do bem voluntário só terá relevância no caso de a entidade familiar ser proprietária de mais de um imóvel para sua residência, e desejar tornar impenhorável aquele que tiver maior valor. Dessa forma, a eleição voluntária do bem de família mais valioso irá afastar a regra geral da incidência da impenhorabilidade sobre o imóvel de menor valor.
Por se aplicar somente nessa rara hipótese, e por exigir ato voluntário do proprietário, o bem de família voluntário, a ser visto em seqüência, tem pouca utilização.


Bem de Família Voluntário
O Código Civil de 2002 estabelece normas sobre o instituto, revogando alguns artigos da Lei de Registros Públicos, como se passa a expor:
Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.
A destinação é de parte do patrimônio da entidade familiar à especial afetação da moradia e do sustento da família. Sendo assim, é preciso se ter em mente que o imóvel tem que ser de propriedade exclusiva da entidade familiar, não podendo estar, ao tempo da instituição do bem de família, sujeito a quaisquer ônus ou gravames que afetem o caráter pleno da propriedade.
Nesse sentido é a lição de Ademar Fioranelli: "Requisito essencial e indispensável para fins registrários é a condição de proprietário com título aquisitivo e definitivo registrado, em estrita observância aos princípios da continuidade e disponibilidade, e que o bem esteja a salvo de ônus ou gravames, em condições de solvência e ocupação pela família. O nosso ordenamento assim reclama, até pela finalidade da instituição, o que impossibilitaria que titulares de direitos reais mitigados – promitentes compradores, cessionários, promitentes cessionários ou mesmo o usufrutuário – venham, nessa condição, constituir o bem de família voluntário, retirando-o do comércio, estendendo-se a proibição ao condômino em coisa comum pro indiviso, uma vez que a titularidade deve ser exclusiva (...) Se no regime do bem de família legal há plena proteção dada pela Lei 8.009/90 ao mero detentor da posse, ao superficiário (art. 1.369), aos titulares de direitos decorrentes de compromisso de venda e compra, cessão (art. 1.390 a 1.418), pondo-os a salvo de execuções, não se pode dizer o mesmo para o bem de família convencional, que, por estar atrelado à iniciativa dos instituidores, dependerá de prova dominial para sua constituição". E conclui o citado autor: "Por essas razões comungo com categorizados juristas que defendem a impossibilidade de a instituição do bem de família recair sobre imóvel gravado com hipoteca ou, se constituído, receber o mesmo gravame. O imóvel, ao tempo da instituição, deverá estar livre e desembaraçado de qualquer ônus, de maneira a garantir aos beneficiados o pleno exercício de seu direito". [07]
O caput do artigo 1.711 inovou o sistema jurídico, já que seu antecessor, o artigo 260 da Lei de Registros Públicos, previa tão-somente a possibilidade de sua instituição por escritura pública.
Outra novidade consiste na exigência de que o bem não ultrapasse um terço do patrimônio líquido da entidade familiar. Patrimônio líquido é a soma de todos os haveres da entidade familiar, deles se subtraindo todas as dívidas existentes ao tempo de sua instituição. A constatação de que o bem instituído não ultrapassa o limite de um terço do patrimônio líquido do beneficiário refoge por completo à alçada do registrador. Assim, tal declaração deve ser firmada unilateralmente pelo beneficiário, sob pena de sua responsabilização civil e penal.
Ressaltamos que a pouca eficácia social do bem de família voluntário decorre exatamente do caráter marcadamente elitista da previsão legal, já que ele só se dirige à ínfima parcela da sociedade que tem a propriedade de mais de um imóvel residencial, e que deseja fazer recair a impenhorabilidade sobre o de maior valor. Ademais, a realidade de o imóvel residencial corresponder a apenas um terço do patrimônio líquido da família soa absurdo para, seguramente, mais de noventa e cinco por cento da população brasileira.
Lembramos, ainda, que o regime de bens adotado pelo casal não interfere na determinação do patrimônio líquido, já que esse abrange o de ambos os cônjuges [08].
O parágrafo único delineia outra importante previsão legal, ao permitir que terceiro doe, em ato inter vivos ou mortis causa, imóvel a uma entidade familiar e o institua como bem de família da mesma. A eficácia de tal ato, salientamos, depende de aceitação expressa dos beneficiados.
Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
O dispositivo em tela define quais são os objetos passíveis de serem instituídos como bem de família, bem como a finalidade dos mesmos e da eventual renda com eles auferida. Primeiramente, refere-se a bens imóveis, incluindo suas pertenças e acessórios.As pertenças [09] somente se consideram incluídas no bem de família por causa da expressa disposição do artigo em comento. Já os acessórios seguiriam o imóvel mesmo se a lei silenciasse a respeito, pois essa presunção derivada da regra geral de Direito.A idéia é garantir um mínimo de habitabilidade ao imóvel que, de outra forma, não se prestaria à moradia da família.
O instituto evoluiu no sentido de se admitir como objeto não apenas bens de raiz, destinados à morada da família, mas também valores mobiliários, tais como títulos da dívida pública, ações societárias e commercial papers, desde que instituídos ao lado de um imóvel que sirva de moradia à família e, ainda, desde que não ultrapassem o valor desse, quando de sua instituição, como se verá adiante.
É inegável que a maior extensividade trazida pelo artigo 1.712 do Código Civil representa um avanço, mostrando-se plenamente convergente com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da função social da propriedade, que norteiam o instituto do bem de família.
Antes do advento do Código Civil, só era possível a substituição de um imóvel por outro imóvel mais barato (aplicando-se o resto em valores mobiliários), desde que se comprovasse judicialmente a necessidade de tal medida. Ou seja, o bem inicialmente instituído como bem de família era exclusivamente um imóvel. Com o advento do Código Civil de 2002, contudo, é possível se instituir, ab initio, o bem de família sobre um imóvel e, paralelamente, sobre valores mobiliários que provejam o sustento familiar e a manutenção da residência da família.
Se somente com o Código Civil atual passou-se a admitir a instituição do bem de família ab initio também sobre valores mobiliários, por outro, desde o Decreto-Lei 6.777, de 1944, já havia previsão legal para a sub-rogação real do bem de família, ou seja, a possibilidade de substituição do bem de família por outro imóvel ou por títulos da dívida pública (artigo 1º do referido Dec.-Lei). A possibilidade de sub-rogação real foi mantida, com previsão no artigo 1.719 do Código Civil:
Art. 1.719. Comprovada a impossibilidade da manutenção do bem de família nas condições em que foi instituído, poderá o juiz, a requerimento dos interessados, extingui-lo ou autorizar a sub-rogação dos bens que o constituem em outros, ouvidos o instituidor e o Ministério Público.
Em alguns casos, a instituição do bem de família sobre determinado imóvel significa, na verdade, um entrave financeiro para a entidade familiar. A sub-rogação real mostra-se, pois, medida necessária para se ajustar a garantia representada pelo bem à realidade econômica da família beneficiada.
Pense-se, assim, no exemplo de ser instituído como bem de família um imóvel cuja manutenção seja muito dispendiosa, sendo que os contemplados com a instituição não dispõem de renda suficiente para mantê-lo. Nesse caso, é legítimo aos favorecidos requerer judicialmente a substituição do bem por algum outro que se amolde melhor à sua realidade econômica, sem que isso importe em diminuição da garantia representada pelo bem de família. A cláusula de inalienabilidade tem caráter protetivo à entidade familiar beneficiada e não pode ser algo nefasto à mesma.
Diz-se, genericamente, que a teleologia do instituto impede a instituição de bem de família sobre terrenos nus, ou não-edificados. Tal fato se justificaria por via de uma interpretação teleológica da norma, já que, em tese, um terreno não edificado não poderia servir adequadamente à moradia da família, nem tampouco se poderia dele extrair renda suficiente à manutenção do imóvel que sirva de residência à família, finalidades precípuas do instituto.
Contudo, salientamos que tal vedação só tem lugar se a tentativa de instituição do bem de família tiver por objeto exclusivamente terreno nu. Isso porque a lei, ao prever a possibilidade de instituição do bem familiar sobre valores mobiliários, como forma de garantia à manutenção do imóvel afetado à residência familiar, possibilitou também que a renda proporcionada pela exploração do terreno nu possa seja instituída como bem de família.
Várias são as possibilidades. No caso de o terreno nu ser imóvel rural: produtos ou frutos naturais, tais como madeira, plantas medicinais e frutos exóticos, entre outros, cuja comercialização possibilite aos proprietários auferir renda suficiente à manutenção de um outro imóvel que sirva à residência da família; b) fontes oriundas do turismo ecológico, como a cobrança para acesso a sítios e paisagens naturais de especial interesse; c) outros frutos civis, como o aluguel e o arrendamento. Em tese, até os chamados créditos-carbono, tão em voga nos tempos atuais, poderiam ensejar auferimento de renda, ainda que afetada em percentuais mínimos, é claro, à manutenção do imóvel familiar. No caso de imóvel urbano, a renda pode advir da exploração do espaço para placas de publicidade, estacionamento para veículos e instalação de antenas de telefonia celular, entre outros.
De todo o modo, precisa ficar claro que não é o terreno nu, mas a renda dele proveniente que poderá ser instituída como bem de família, se paralelamente a um imóvel que efetivamente sirva de residência à entidade familiar. Não se poderia nunca instituir autonomamente um terreno nu como bem de família, mas somente se em função de prover a manutenção do imóvel residência.
Art. 1.713. Os valores mobiliários, destinados aos fins previstos no artigo antecedente, não poderão exceder o valor do prédio instituído em bem de família, à época de sua instituição.
§ 1o Deverão os valores mobiliários ser devidamente individualizados no instrumento de instituição do bem de família.
§ 2o Se se tratar de títulos nominativos, a sua instituição como bem de família deverá constar dos respectivos livros de registro.
§ 3o O instituidor poderá determinar que a administração dos valores mobiliários seja confiada a instituição financeira, bem como disciplinar a forma de pagamento da respectiva renda aos beneficiários, caso em que a responsabilidade dos administradores obedecerá às regras do contrato de depósito.
Quanto à limitação ao preço dos valores mobiliários contida no caput do artigo 1.713, constatamos que, em uma época em que os juros praticados no mercado estão em rota de queda, torna-se evidente a possibilidade de eles não serem suficientes para a manutenção do imóvel. Contudo, deve-se ter em mente que tal limitação visa evitar abusos daqueles que pretendem proteger, sob o manto da impenhorabilidade, rendas muito superiores àquelas que bastariam ao sustento de sua família. Por isso, tal medida justifica-se plenamente.
O conteúdo do parágrafo 1º do supracitado artigo homenageia o princípio da especialidade objetiva, já referido em páginas anteriores, prevendo a necessidade de se pormenorizar os caracteres também dos valores mobiliários, permitindo a sua individualização de maneira inequívoca. Visualizamos, desse modo, a grande permeabilidade do mencionado princípio registral.
O parágrafo 2º menciona a imperatividade de se fazer menção expressa à instituição do bem de família nos livros próprios em que se encontrarem registrados os títulos nominativos. Tal formalidade se mostra necessária não só para o respeito à especial afetação que deverá ter o título, como também pelas implicações sentidas na alienabilidade do mesmo por força de sua instituição como bem de família, conforme previsão do artigo 1.717, a ser referido.
O parágrafo 3º prevê a possibilidade de o instituidor confiar a administração dos valores mobiliários a uma instituição financeira, que será depositária dos mesmos. Por essa razão, tal administradora é tida como mera detentora dos títulos, já que os têm em seu poder em nome de terceiro. Assim, em caso de falência da instituição financeira, tais títulos, por não integrarem o seu patrimônio, deverão ser transferidos a outra administradora, nos termos do artigo 1.718 do Código Civil.
Art. 1.714. O bem de família, quer instituído pelos cônjuges ou por terceiro, constitui-se pelo registro de seu título no Registro de Imóveis.
Como mencionado, o bem de família depende de ato do proprietário para sua instituição. O registro do bem de família voluntário no Livro 2 do competente Registro de Imóveis, ou seja, no cartório da circunscrição imobiliária a que o imóvel estiver submetido, tem efeito constitutivo. Vale dizer, antes de efetuado o registro, não há bem de família voluntário.
Art. 1.715. O bem de família é isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, salvo as que provierem de tributos relativos ao prédio, ou de despesas de condomínio.
O artigo acima estabelece a impenhorabilidade relativa às dívidas posteriores à constituição do bem de família, ou seja, ulteriores ao registro. Os tributos relativos ao prédio e as despesas de condomínio têm natureza jurídica de obrigações propter rem (em função da coisa), e derivam da própria relação de propriedade imobiliária. Assim, é natural se entender que o seu inadimplemento sugere o não atendimento dos deveres inerentes à relação de propriedade, donde se justifica a exceção legal [10] permissiva da penhora.
Parágrafo único. No caso de execução pelas dívidas referidas neste artigo, o saldo existente será aplicado em outro prédio, como bem de família, ou em títulos da dívida pública, para sustento familiar, salvo se motivos relevantes aconselharem outra solução, a critério do juiz.
Art. 1.716. A isenção de que trata o artigo antecedente durará enquanto viver um dos cônjuges, ou, na falta destes, até que os filhos completem a maioridade.
Art. 1.717. O prédio e os valores mobiliários, constituídos como bem da família, não podem ter destino diverso do previsto no art. 1.712 ou serem alienados sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais, ouvido o Ministério Público.
Obviamente, a destinação especial e o pré-requisito do consentimento dos interessados, seus representantes legais e do Ministério Público não retira a natureza de móvel dos valores mobiliários.
Art. 1.718. Qualquer forma de liquidação da entidade administradora, a que se refere o § 3o do art. 1.713, não atingirá os valores a ela confiados, ordenando o juiz a sua transferência para outra instituição semelhante, obedecendo-se, no caso de falência, ao disposto sobre pedido de restituição.
A primeira parte do artigo 1.718 traduz uma obviedade: se o bem de família, por sua especial afetação, já constitui patrimônio destacado do patrimônio de seu proprietário, o que dizer de sua distinção frente ao patrimônio da entidade que porventura o administrar. Ademais, o parágrafo 3º do artigo 1.713 já estabeleceu a condição de depositário da instituição financeira. Desse modo, a relevância do artigo 1.718 consiste em determinar o destino dos valores mobiliários no caso de falência de sua administradora: eles deverão ser transferidos a outra instituição financeira, que os administrará igualmente na condição de depositária.
Art. 1.720. Salvo disposição em contrário do ato de instituição, a administração do bem de família compete a ambos os cônjuges, resolvendo o juiz em caso de divergência.
Esse artigo é consentâneo com a norma contida no artigo 226, parágrafo 5º, da Constituição Federal, que estabelece a igualdade entre os cônjuges no exercício do poder familiar, em cujo âmbito se insere a administração do bem de família.
Parágrafo único. Com o falecimento de ambos os cônjuges, a administração passará ao filho mais velho, se for maior, e, do contrário, a seu tutor.
Art. 1.721. A dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família.
Parágrafo único. Dissolvida a sociedade conjugal pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente poderá pedir a extinção do bem de família, se for o único bem do casal.
Parece-nos claro: a dissolução da sociedade conjugal põe fim ao casamento, e não à família. Assim, se o bem visa à proteção da família, subsistindo essa, razões não há para se criar uma forma de extinção compulsória do bem familiar. Por essa razão, discordamos do respeitável posicionamento doutrinário que entende ser possível a reversão do bem ao doador no caso de dissolução da sociedade conjugal [11].
Art. 1.722. Extingue-se, igualmente, o bem de família com a morte de ambos os cônjuges e a maioridade dos filhos, desde que não sujeitos a curatela.
O artigo 1.722 refere requisitos cumulativos, ou seja, na morte dos pais, sobrevivendo os filhos, o bem de família será mantido até que esses atinjam a capacidade plena pela maioridade ou que, sendo maiores, lhes cesse a incapacidade.
Entendemos, aqui sim, ser aplicável o artigo 547 do Código Civil, que prevê a possibilidade de reversão do bem de família ao doador no caso de ele sobreviver ao donatário. A reversão há de ser entendida restritivamente, em função do caráter protetivo consistente na garantia do bem à entidade familiar contemplada: somente no caso de extinção da entidade familiar, pela morte de ambos os cônjuges e aquisição da capacidade civil pelos filhos é que se poderia abrir a possibilidade de reversão do bem ao patrimônio do doador. Como salientado em linhas anteriores, a mera dissolução da sociedade conjugal, por não dar fim à família, não deve ensejar a retroversão.


Procedimentos da Lei de Registros Públicos
Quanto ao procedimento de registro, deve-se obedecer às disposições previstas nos artigos 260 a 265 da Lei de Registros Públicos, que transcrevemos abaixo:
"Art. 260. A instituição do bem de família far-se-á por escritura pública, declarando o instituidor que determinado prédio se destina a domicílio de sua família e ficará isento de execução por dívida".
O artigo 260 da LRP encontra-se revogado pelo artigo 1.711 do novo Código Civil, a cuja análise, feita em páginas anteriores, remetemos o leitor.
"Art. 261. Para a inscrição do bem de família, o instituidor apresentará ao oficial do registro a escritura pública de instituição, para que mande publicá-la na imprensa local e, à falta, na da Capital do Estado ou do Território".
Para alguns autores, o artigo 261 estaria revogado, pois foi silente a esse respeito o Código Civil [12]. Entendemos, data venia, que a exigência de publicação na imprensa local não constitui um requisito formal da constituição do direito, de natureza substantiva, mas mero regramento procedimental na seara registrária, razão pela qual a não previsão do procedimento pelo Código Civil não pode implicar sua revogação tácita. O caráter registral da norma impõe seja interpretado o silencio do Código como um respeito à aplicação da Lei de Registros Públicos, e não a revogação do procedimento ali previsto.
Assim, é imprescindível, via de regra, a publicação editalícia para o conhecimento por terceiros. O termo "imprensa local" deve ser considerado o veículo de comunicação que tenha circulação na circunscrição imobiliária. Não existindo esse, a publicação será feita no veículo de circulação na Capital do Estado ou Território. O prazo de publicação deve ser o de um dia [13].
Havia uma única hipótese de dispensa da publicação de editais: tratava-se da instituição de bem de família concomitante à aquisição de imóvel financiada pela Caixa Econômica Federal ou por órgão assistencial ou previdenciário público, concedendo empréstimo para fins de auxílio a casamento, desde que feito a pessoas com idade inferior a 30 anos (Decreto-Lei 3.200/1941, artigo 8º, parágrafo 5º). Nesse caso, o registro do bem era feito em ato contínuo ao registro da aquisição da propriedade, o que requer esteja o imóvel devidamente matriculado. O Decreto-Lei 3.200/41 encontra-se revogado pelo atual Código Civil.
Todo o restante procedimento registral continua a ser regido conforme previsto na Lei de Registros Públicos, já que silente nesse ponto o Código Civil:
Art. 262. Se não ocorrer razão para dúvida, o oficial fará a publicação, em forma de edital, do qual constará:
I - o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio;
II - o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial.
A dúvida mencionada no caput é o chamado procedimento de dúvida, também regido pela Lei de Registros Públicos. Julgado procedente, o interessado tem que satisfazer a exigência levantada pelo oficial para efetuar o registro, ou poderá desistir do mesmo. Julgada improcedente a dúvida, o procedimento registral retorna a seu seguimento normal, publicando-se o edital.
A reclamação contra a instituição do bem de família, que visa a impedir que se registre o mesmo, deve ser dirigida ao registrador.
Art. 263. Findo o prazo do nº II do artigo anterior, sem que tenha havido reclamação, o oficial transcreverá a escritura, integralmente, no livro nº 3 e fará a inscrição na competente matrícula, arquivando um exemplar do jornal em que a publicação houver sido feita e restituindo o instrumento ao apresentante, com a nota da inscrição.
Nota-se que, além de se registrar, para sua constituição, o bem de família no Livro 2 (artigo 167, I, 1, da LRP), há, pois, necessidade de se transcrever integralmente a escritura de sua instituição no Livro 3.
Art. 264. Se for apresentada reclamação, dela fornecerá o oficial, ao instituidor, cópia autêntica e lhe restituirá a escritura, com a declaração de haver sido suspenso o registro, cancelando a prenotação.
A "suspensão" de que fala o caput do artigo 264 é, na verdade, a extinção do procedimento de registro. A própria conseqüência, qual seja, o cancelamento da prenotação, já denota tratar-se de medida extintiva do procedimento do registro. No caso de a reclamação ser declarada desprovida de fundamento pelo magistrado, pode o instituidor cobrar em juízo as perdas e danos acaso ocorridos.
§ 1° O instituidor poderá requerer ao Juiz que ordene o registro, sem embargo da reclamação.
§ 2º Se o Juiz determinar que proceda ao registro, ressalvará ao reclamante o direito de recorrer à ação competente para anular a instituição ou de fazer execução sobre o prédio instituído, na hipótese de tratar-se de dívida anterior e cuja solução se tornou inexeqüível em virtude do ato da instituição.
§ 3° O despacho do Juiz será irrecorrível e, se deferir o pedido será transcrito integralmente, juntamente com o instrumento.
A doutrina diverge quanto à natureza do procedimento, se administrativa [14] ou judicial [15]. Entendemos tratar-se de procedimento de natureza administrativa, visto que tal procedimento não faz coisa julgada material, estando claro que a lei ressalva ao reclamante o direito de recorrer à ação competente para anular a instituição do bem de família ou promover a execução de sua dívida, com a venda judicial do imóvel registrado como bem de família.
Art. 265. Quando o bem de família for instituído juntamente com a transmissão da propriedade (Decreto-Lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941, art. 8°, parágrafo 5º), a inscrição far-se-á imediatamente após o registro da transmissão ou, se for o caso, com a matrícula".
O artigo 265 da LRP encontra-se revogado, pois refere situação já não mais existente a situação jurídica que ele normatiza, pois também foi revogado o Decreto-Lei n. 3.200/1941.


Bibliografia:
BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de Imóveis, 10ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2004.
BRASIL, Lei Federal nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências. Disponível em: (acesso em maio de 2007)
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MELO JR., Regnoberto M. de. Lei de Registros Públicos Comentada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003.


Notas
01 Na linha derivativa do mencionado Homestead act encontramos, ainda, o artigo 5º, XXVI da Constituição Federal: "a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento".
02 "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado".
03 "Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição". (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000).
04 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
05 Previsto no artigo 1º, III, da CRFB.
06 Previsto no artigo 5º, XXIII, da CRFB.
07 FIORANELLI, Ademar, "Bem de família no novo Código Civil e o registro de imóveis", Revista de Direito Imobiliário, nº 59, jul/dez. de 2005, disponível em . (Acesso em maio de 2007).
08 CENEVIVA, op. cit., p. 566.
09 "Art. 94. Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso".
10 É nesse sentido que o Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001) prevê, em seu artigo 8º, a possibilidade de cobrança progressiva de IPTU e, ainda, de desapropriação de terreno urbano que não tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização do imóvel nos prazos previstos no plano diretor municipal.
11 DINIZ, op. cit., p. 198.
12 CENEVIVA, op. cit., p. 262.
13 MELO JR., op. cit., p. 617.
14 CENEVIVA, op. cit., p. 571.
15 MELO JR., op. cit. p. 622.

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Fonte
O autor:
José Celso Ribeiro Vilela de Oliveira

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bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
OLIVEIRA, José Celso Ribeiro Vilela de. O bem de família e o registro de imóveis . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1497, 7 ago. 2007. Disponível em:http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10246 . Acesso em: 23 abr. 2010.


Postado por Sancho Neto

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