sexta-feira, 16 de novembro de 2012

DESAPROPRIAÇÃO: O Momento Consumativo e o Registro do Imóvel Expropriado.

 Fladja Raiane Soares de Souza

                                      Advogada da União
Sumário: 1. Introdução; 2. Desapropriação: modo originário de aquisição da propriedade; 3. Modalidades de desapropriação; 4. Procedimento expropriatório; 5. Momento consumativo da desapropriação;  6. Registro do Imóvel Expropriado; 7. Conclusão; 8. Referências bibliográficas.
1. Introdução:
Consiste o direito de propriedade em uma garantia fundamental do homem (art. 5.º[1] da Constituição Federal/88), assegurada a sua inviolabilidade, nos termos da lei. Assim, tem a propriedade status de direito fundamental. Ademais, revela-se como o mais amplo direito de senhorio que pode se verificar sobre um bem (art. 1.228[2] do Código Civil/2002), porquanto assegura, sob o aspecto interno da relação de propriedade, poderes de uso, gozo e fruição sobre o bem, e, ainda, externamente, poder de reivindicação de quem injustamente o detenha.
Assumindo a feição socializadora consagrada na CF/88, o CC/2002 tratou de inserir na definição do direito de propriedade o conceito de função social da propriedade (art. 1228, §1º), pelo que o exercício dos poderes de sujeição do bem deve se dar em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e com a preservação do meio ambiente.
Entretanto, em que pese o cunho privatístico a que se historicamente se vincula a propriedade, interessa observar que desde os Romanos[3] esse direito acha-se passível da interferência do Estado, ante os reclamos de interesse público. Insere-se aí a desapropriação, instituto do Direito Administrativo, mais especificamente uma das modalidades de intervenção na propriedade por parte do Poder Público, e que se revela como a forma mais drástica de intervenção, haja vista consistir em privar alguém da propriedade (cf. Aurélio Buarque), ou seja, tirar a propriedade de outrem de forma compulsória. É forma de intervenção supressiva, na terminologia de Carvalho Filho[4], enquanto que as demais modalidades (servidão administrativa, requisição, ocupação temporária, limitação administrativa e tombamento) são restritivas, por apenas retirarem algumas faculdades do domínio.
Conceitua-se a desapropriação como um direito do Estado que se traduz em procedimento regido pelo Direito Constitucional-Administrativo, visando à imposição de um sacrifício total, por justa causa, de determinado direito patrimonial, particular ou público – respeitada a hierarquia -, tendo como finalidade a aquisição pelo Poder Público ou de quem, delegadamente, cumpra o seu papel, por intermédio de indenização que há de ser prévia e justa, efetuado o pagamento em dinheiro, com as ressalvas constitucionais expressas [5].
Por conseqüência, com a desapropriação, o bem passará à dominialidade pública, perdendo sua categoria de bem privado - na maioria dos casos -, sujeitando-se, assim, ao regime jurídico de direito público. Logo, a definição do momento em que se consuma a desapropriação, com a incorporação do bem à Fazenda Pública, é questão que apresenta relevância jurídica como marco delimitador da aquisição de propriedade pelo expropriante, e conseqüente perda para o expropriado.
De início, entretanto, cumpre observar a natureza da aquisição que se dá pela desapropriação, e as modalidades e procedimentos desta, por serem temas essências à abordagem de seu momento consumativo, tema sobre o qual surgiram diversas posições doutrinárias, conforme se verá adiante.
 2. Desapropriação: modo originário de aquisição da propriedade.
Classificam-se os meios de aquisição de um bem em originários e derivados. Na forma originária não há transmissão da coisa, pois o fato jurídico em si é que enseja a transferência da propriedade, prescindindo de correlação com qualquer título jurídico de que seja titular o anterior proprietário, não havendo sub-rogação de titular a titular. Já na derivada, ocorre relação negocial entre o proprietário e o adquirente, sendo necessário, portanto, a participação volitiva do transmitente.
Estas são as definições adotadas pela doutrina moderna em geral, que para distinguir os meios originários dos derivados tomou como critério o aspecto subjetivo, que se verifica pela existência ou não de transmissão ou sucessão, o que, por sua vez, implica numa relação de causalidade entre o transmitente e o adquirente. Todavia, o jurista BRINZ, partindo de critério objetivo, considerava que só havia aquisição originária quando o direito de propriedade não preexistisse à sua aquisição, ou seja, a distinção estava no fato de a coisa ter tido, ou não, anteriormente, dono. Essa tese, todavia, não prevaleceu, dentre outros motivos, por se constatar que os meios que dizia ela ser derivados, tal como a usucapião, permitirem a aquisição de direitos reais intransmissíveis, como o usufruto, o uso e a habitação. Assim, demonstrou-se que o novo direito não deriva do anterior, mas surge originariamente, opondo-se inclusive ao proprietário. [6]
Nessa linha, a desapropriação, segundo ampla maioria da doutrina, é forma originária de aquisição da propriedade, o que significa que é, por si mesma, suficiente para instaurar a propriedade em favor do Poder Público, independentemente de qualquer vinculação com o título jurídico anterior proprietário.  Assim, tal como na usucapião, ocupação, especificação, ou acessão, é irrelevante a vontade do proprietário, pois não é transmitente do imóvel bem como pouco interessa o título que possua, se justo ou injusto, de boa ou má-fé.
Carvalho Filho ressalta ser a desapropriação um modo sui generis de aquisição da propriedade, mas “pela forma como se consuma, é de ser considerada forma de aquisição originária, porque a só vontade do Estado é idônea a consumar o suporte fático gerador da transferência da propriedade, sem qualquer relevância atribuída à vontade do proprietário ou ao título que possua[7].
Juarez Freitas observa que ela se caracteriza como modalidade de aquisição originária pelo Poder Público, pois o bem se incorpora ao domínio público com abstração plena de qualquer título antecedente, sem que se deva catalogá-la sequer como instituto misto[8].
Indubitável, pois, que na desapropriação inexiste qualquer liame negocial vinculando o expropriante ao proprietário, eis que há a extinção do direito de propriedade que o expropriado detinha sobre bem e o surgimento do direito de propriedade do expropriante sobre o mesmo bem. Assim, é evidente a natureza originária da propriedade imóvel que venha a ser adquirida.
 Dessa premissa surgem alguns importantes efeitos:
a) A desapropriação pode prosseguir até mesmo sem que se saiba quem é o proprietário.
b) Ainda que o dono não tenha sido indenizado, mas terceiro, a transferência operada através da desapropriação é irreversível.
c) Todos os direitos de reais de terceiros sobre a coisa passarão a incidir sobre o numerário depositado à ordem do juízo. Nesse sentido consta nos arts. 31[9] do Decreto-lei 3.365/1941 (chamado de “lei geral das desapropriações”), e 17 [10]da Lei 8.257/1991 (regula a expropriação das glebas nas quais se localizem culturas ilegais de plantas psicotrópicas).

3. Modalidades de desapropriação:
De início, exsurge em nosso ordenamento a desapropriação clássica ou ordinária, em que se evidencia a supremacia do interesse público sobre o particular, realizada mediante indenização prévia, justa e em dinheiro, tendo como pressupostos a utilidade pública, a necessidade pública, e o interesse social.
Tem fundamento no art. 5º, XXIV[11], da CF, sendo que os referidos pressupostos, ou melhor, as hipóteses que se configuram como de necessidade ou utilidade pública, ou de interesse social, são definidos na legislação ordinária. Destacam-se o Decreto-lei nº 3.365/1941, que dispõe sobre os casos de desapropriação por utilidade pública,  englobando aí os casos de necessidade pública (art. 5º), e a Lei 4.132/1962, que define os casos de desapropriação por interesse social.
A CF ainda contempla a desapropriação extraordinária, que é realizada quando o bem particular, que está sendo desapropriado, não está cumprindo a sua função social. Nesta, há indenização, mas não será prévia, nem em dinheiro. Cuida-se de desapropriação com caráter sancionatório, verificando-se em duas hipóteses.
A primeira delas é a que consta do art. 182, § 4º, III[12], da CF, denominada de desapropriação urbanística. Essa forma expropriatória é prevista como a que pode ser adotada a título de penalização ao proprietário do solo urbano que não atender a exigência de promover o adequado aproveitamento de sua propriedade ao plano diretor municipal, estando o imóvel subutilizado ou não utilizado. Assim, o Poder Público municipal, mediante lei específica, poderá promover essa desapropriação, observada a gradação imposta no art. 8.º [13] da Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), sendo o pagamento da indenização feito mediante títulos da dívida pública, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
A outra hipótese de desapropriação extraordinária, quando a propriedade não esteja cumprindo a sua função social, é prevista nos arts. 184[14] a 186 da CF, denominada pela doutrina de desapropriação rural. Tem o objetivo de permitir a perda da propriedade de imóveis rurais para fins de reforma agrária. A indenização será paga em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, sendo que as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro. Possui disciplina na Lei 8.629/1993, e ainda na Lei Complementar 76/1993.
Há, por fim, a desapropriação prevista no art. 243[15] da CF, chamada de desapropriação confiscatória, por não conferir ao expropriado direito indenizatório. A perda da propriedade nesse caso tem como pressuposto a utilização da propriedade para cultura ilegal de plantas psicotrópicas. Após a expropriação, conforme o procedimento disciplinado na Lei 8.257/91, são essas áreas destinadas a assentamento de colonos com vistas ao cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos.
Cumpre mencionar, ainda, a nova figura trazida pelos §§4.º e 5.º[16] do art. 1.228, CC/2002, que  vem sendo denominada por alguns doutrinadores como desapropriação judicial, na qual há a perda da propriedade diante posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, mediante o pagamento de indenização. Embora não se confunda com a usucapião, que não requer contrapartida econômica, essa nova figura também não se identifica por completo com a desapropriação propriamente dita, que tem como expropriante o Poder Público, passando o bem à dominialidade pública (embora posteriormente possa ter destinação diversa). Assim, sua disciplina será dada pelo direito privado, em que pese o seu caráter coletivo, pois se verificará no interesse particular, dos possuidores.

4. Procedimento expropriatório:
Em linhas gerais, a desapropriação, enquanto procedimento, possui duas fases, a declaratória e a executiva, sendo que esta última pode ser processada tanto pela via administrativa/extrajudicial, como pela via judicial.
A fase declaratória se consubstancia na indicação da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social do bem a ser expropriado.  Há, assim, uma manifestação compulsória de vontade do Poder Público, submetendo determinado bem ao regime de expropriação.
Os efeitos jurídicos da declaração de utilidade pública e interesse social são três: o direito de as autoridades expropriantes penetrarem no imóvel, mas que não se confunde com a imissão provisória na posse (artigo 7.º do Dec.-lei n. 3.365/1941); a fixação do estado do bem, incluindo as benfeitorias nele existentes, o que gera efeitos no cálculo de indenização e o início da contagem do prazo de caducidade da declaração.
Já na fase executória, serão adotadas medidas necessárias à implementação da desapropriação, visando à aquisição do bem pelo Poder Público. Havendo concordância do proprietário sobre o valor da desapropriação, o procedimento se encerrará na via administrativa/extrajudicial. Entretanto, de regra, há o prolongamento pela fase judicial, através de ação movida pelo Estado em face do proprietário.
Nesta ação, portanto, discutir-se-á a justa indenização. É possível que durante o seu curso o juiz conceda a imissão provisória na posse (art. 15[17] do Decreto-lei 3.365/1941), quando for o caso.
Interessa, por fim, destacar que pode haver a desapropriação indireta, quando o Poder Público deixa de observar o procedimento legal, administrativo ou judicial, ocupando o bem em caráter definitivo. Caberá ao proprietário, se não o impedir no momento oportuno, deixando que a Administração lhe dê destinação pública, pleitear a indenização por perdas e danos, que corresponderá à justa indenização da desapropriação legal.

5. Momento consumativo da desapropriação:
Vista a extensão do instituto, observa-se que para definir o momento da consumação da desapropriação, e conseqüente aquisição da propriedade, surgiram várias posições doutrinárias e jurisprudenciais, as quais defendiam que ocorria a consumação:
a) Pelo decreto declaratório da utilidade pública;
b) Com a expedição do mandado de imissão na posse;
c) Pela sentença;
d) Com o registro da sentença no Cartório de Imóveis;
e) Com o pagamento da indenização.
Moraes Salles[18] esclarece que essa diversidade de entendimentos originou-se da má redação do Decreto 4.956/1903, que regulava a matéria antes do advento do Decreto-lei 3.365/1941.
Segundo o citado autor, Ruy Barbosa entendia que, embora a aprovação das plantas não cessasse a propriedade em todos os seus elementos, já implicava na indisponibilidade jurídica sobre o bem. Todavia, a desapropriação se concretizava no momento em que era editado o decreto de aprovação dos planos e plantas relativos às obras que seriam executadas pelo Poder Público ou por seus concessionários.
Entretanto, o princípio da previedade da indenização, que esteve presente em todas as nossas constituições, revelava que o decreto de aprovação não poderia importar em desapropriação. Ademais, essa declaração do Poder Público é apenas ato-condição que precede à transferência do bem[19], não tendo qualquer efeito sobre o direito de propriedade, tanto que, se o processo expropriatório parasse nessa fase, deixando caducar o decreto expropriatório, não haveria desapropriação. Isto porque poderiam desaparecer os motivos que embasaram o decreto em questão.
Há também as correntes que buscaram observar a consumação dentro do processo judicial, no caso de não haver acordo.
Para os que consideram haver a consumação com a imissão na posse, diz-se que somente com tal ato despontaria para o expropriante o domínio do bem expropriado, aperfeiçoando-se ou complementando-se. Referem-se à imissão definitiva do art. 29[20] do Decreto-lei 3.365/1941. Todavia, refuta-se tal doutrina ao argumento de que o domínio é antecedente à posse, a não ser em casos excepcionais, como no usucapião. Para a maioria, o elemento posse é irrelevante para fixar o momento da perda da propriedade[21]. De fato, posse e propriedade são institutos absolutamente distintos.
Dentre os que entendem que é a sentença que transfere o domínio, cita-se Eurico Sodré e Manoel de Oliveira Franco Sobrinho[22]. Aquele defendia tal posição por ser a sentença de adjudicação que permitiria a extração da respectiva carta a ser transcrita no registro de imóveis, meio pelo qual se operava a tradição solene. Todavia, o referido autor entendia que a desapropriação era modo derivado de aquisição da propriedade.
Quanto à corrente que atribui a consumação à transcrição da sentença ou acordo no registro competente, foi adotada por Pontes de Miranda e Calmon de Passos[23]. Todavia, sendo a desapropriação um modo originário de aquisição, não há que se subordinar à transcrição do título translativo, seja sentença ou acordo, posto que a transcrição é modo derivado de aquisição da propriedade, reclamando uma relação de causalidade, representada por um fato jurídico, entre o adquirente e o alienante.
 Por fim, resta a posição hoje aceita pela ampla maioria da doutrina, que tem como momento consumativo da desapropriação o pagamento da indenização.
Sustenta-se que é o pagamento da indenização que dá ensejo à consumação da desapropriação, acarretando a aquisição da propriedade pelo expropriante e a perda pelo expropriado[24].
Afirma Moraes Salles que há a consumação da desapropriação com o pagamento ou o depósito judicial da indenização fixada pela sentença ou estabelecida em acordo[25].
Impende ressaltar que o pagamento se refere ao valor fixado na sentença do art. 24[26] do Decreto-lei 3.365/1941, pois somente pela justa indenização há a substituição do bem no patrimônio do expropriando, o que demarca precisamente o momento em que a desapropriação se consuma[27].
Ressalta-se, ainda, que mesmo quando há acordo na fase administrativa da desapropriação, dispensando o ajuizamento do feito expropriatório, esse acordo versará unicamente sobre o valor da indenização a ser paga ao expropriando e não sobre a desapropriação, que é sempre ato unilateral da Administração e, portanto, compulsório. Apenas será consubstanciado em escritura pública (se o bem desapropriado for imóvel de valor superior ao estabelecido no art. 108 do CC/2002), mas essa escritura pública não será “desapropriação amigável”, e sim composição amigável sobre o preço[28].
A indenização assume tamanha relevância face ao dispositivo constitucional que reza: “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição” (art. 5.º,  XXIV). Nos exatos termos do referido dispositivo, não pode haver desapropriação sem o pagamento prévio da justa indenização ao expropriado.
Esse entendimento se aplica, então, as hipóteses em que há uma indenização, quais sejam as desapropriações clássica/ordinária e extraordinária.
Já para a desapropriação confiscatória (art. 243 da CF/88), que tem como uma de suas características não comportar indenização, sua consumação resta explícita no art. 15[29] da Lei 8.257/1991, havendo a incorporação ao patrimônio da União após o trânsito em julgado da sentença no procedimento judicial estabelecido na referida Lei. Todavia, a doutrina ressalva que, embora o art. 243 se refira à “expropriação”, na verdade essa hipótese cuida-se de verdadeiro confisco e não de desapropriação[30].
Quanto à desapropriação indireta, leciona Maria Sylvia que o que ocorre nessa hipótese é, na realidade, a afetação do bem. Tendo em conta que a simples afetação do bem a um fim público não constitui forma de transferência da propriedade, também deve haver a indenização para que se consume a transferência do imóvel. Isto porque, há a aplicação analógica do art. 35[31]do Decreto-lei 3.365/1941, pelo que, uma vez dada a destinação pública ao imóvel, com sua conseqüente incorporação, este não poderá ser objeto de reivindicação, cabendo ao particular pleitear a indenização. Entretanto, se  não o faz em tempo hábil, verificando-se a prescrição, restará ao Poder Público regularizar a propriedade pela usucapião[32].
Afirma a referida autora: “O que ocorre, com a desapropriação indireta, é, na realidade, a afetação, assim entendido ‘o fato ou a manifestação de vontade do poder público, em virtude do que a coisa fica incorporada ao uso e gozo da comunidade’ (cf. Marienhoff, 1960:152-153); acrescente-se que se trata de afetação ilícita, porque atinge bem pertencente a particular; lícita é apenas a afetação que alcança bens já integrados no patrimônio público, na qualidade de bens dominicais, para passá-los à categoria de uso comum do povo ou de uso especial[33].
6. Registro do Imóvel Expropriado:
A transcrição é forma derivada de aquisição da propriedade imobiliária, por meio da publicidade do ato translativo junto ao Registro de Imóveis.
Como visto, a extração da carta de sentença de desapropriação é instrumento hábil para se efetuar a transcrição no registro de imóveis. Também a escritura é título hábil a transcrição da propriedade no caso do acordo entre as partes.
Porém, por se entender que a desapropriação é um modo originário de aquisição da propriedade, esta se efetiva independentemente da regularização no registro de imóveis.
Todavia, a transcrição é levada a efeito, segundo Serpa Lopes e Seabra Fagundes, para que se dê maior publicidade à desapropriação, haja continuidade do registro, fique constando do Registro de Imóveis a extinção da propriedade anterior e se cientifique - a todos a que possa interessar - o término dos direitos reais incompatíveis com a desapropriação[34].
Raimundo Viana[35] igualmente assevera que, na desapropriação, “a finalidade desse registro é muito mais para documentar a saída do bem do domínio privado, do que a testificação da aquisição ou o momento da consumação desta. (...) apenas para evitar negócios irregulares envolvendo o bem, com possibilidade de sérios prejuízos para terceiros de boa-fé”.
Assim, consumada a expropriação pelo pagamento da indenização, cabe ao expropriante regularizar o registro do imóvel expropriado, cuidando-se, portanto, de momentos distintos, sendo esta regularização de grande utilidade, mas não essencial à desapropriação.
7. Conclusão:
O direito de propriedade é garantia fundamental do homem (art. 5.º da CF/88), todavia, passível da interferência do Estado ante os reclamos de interesse público, o que pode ocorrer através da desapropriação, forma mais drástica de intervenção.
Através do respectivo procedimento legal, regido pelo Direito Constitucional-Administrativo, o Estado pode impor a desapropriação,  visando ao sacrifício total, por justa causa, de determinado direito patrimonial, o que implica na aquisição deste pelo Poder Público, por intermédio de prévia e justa indenização, com as ressalvas constitucionais expressas.
Considerando que na desapropriação inexiste qualquer liame negocial vinculando o expropriante ao proprietário, eis que há a extinção do direito de propriedade que o expropriado detinha sobre bem e o surgimento do direito de propriedade do expropriante sobre o mesmo bem, caracteriza-se como causa originária de aquisição da propriedade imóvel pelo Poder Público.
Dentre as várias correntes que buscaram definir o momento da consumação da desapropriação, a posição hoje aceita pela ampla maioria da doutrina vê o pagamento da indenização como o momento em que o bem passará à dominialidade pública, perdendo sua categoria de bem privado.
Para a desapropriação confiscatória (art. 243 da CF/88), que não comporta indenização, sua consumação resta explícita no art. 15 da Lei 8.257/1991, havendo a incorporação ao patrimônio da União após o transito em julgado da sentença no procedimento judicial estabelecido na referida Lei.
Já quando há desapropriação indireta, ocorre, na realidade, a afetação ilícita do bem, o que não constitui forma de transferência da propriedade, pelo que deve haver a indenização para que se consume a aquisição da propriedade, sendo que caberá ao particular pleitear a indenização. Se não o fizer em tempo hábil, verificando-se a prescrição, restará ao Poder Público regularizar a propriedade pela usucapião.
Por fim, há que se distinguir o momento consumativo da desapropriação e regularização do registro do imóvel, haja vista ser a desapropriação um modo originário de aquisição da propriedade, se efetivando independentemente desta regularização, que, entretanto, é de grande utilidade, mas não essencial à desapropriação.
8. Referências bibliográficas:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12.ª ed. rev., amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
CASTRO, Mônica. A Desapropriação Judicial no Novo Código Civil. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil nº 19 - SET-OUT/2002, pág. 145.
COSTA, Maria Isabel Pereira da. A transferência do domínio do bem imóvel para o poder expropriante no processo judicial. Revista AJURIS n.º 47 - 1989, pág. 142.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
FREITAS, Juarez. Estudos de Direito Administrativo.  2.ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
PASSOS, J. J. Calmon de. A Transferência da Propriedade para o Domínio do Expropriante no Curso da Ação de Desapropriação. Revista Brasileira de Direito Processual. Vol. 31 – 1.º Bim. de 1982, pág. 63.
SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 4.ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000.
SPITZCOVSKY, Celso. Direito Administrativo. 4.ª ed. São Paulo: Ed. Paloma, 2003.
VIANA, Raimundo. Do Registro na Desapropriação. Revista Forense. Vol. 298 – Abril/Junho de 1987, pág. 373.


[1]Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
.........................................................
XXII - é garantido o direito de propriedade;
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social”.
[2]Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas“.
[3] Embora não conhecessem o instituto tal como hoje se apresente, ressalta José Carlos de Moraes Salles em: A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 4.ª ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p.61.
[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12.ª ed. rev., amp. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pg. 731.
[5] FREITAS, Juarez. Estudos de Direito Administrativo.  2.ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1995, pg. 84.
[6] Cf. voto de Moreira Alves no RE 94.580-RS, onde aborda o caráter originário da aquisição por usucapião.
[7] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob.cit., pg. 741.
[8] FREITAS, Juarez. Ob. Cit., pg. 75.
[9]Art. 31. Ficam sub-rogados no preço quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado”.
[10]Art. 17. A expropriação de que trata este lei prevalecerá sobre direitos reais de garantia, não se admitindo embargos de terceiro, fundados em dívida hipotecária, anticrética ou pignoratícia”.
[11] “XXIV-A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.
[12] “§ 4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”. (G.n)
[13]Art. 8º Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública”. (G.n)
[14] “Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
§ 1º. As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.
§ 2º. O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.
(...)”. (G.n)
[15]Art. 243. As glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e especificamente destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. (G.n)
[16]§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
   § 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”.
[17]Art. 15. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada de conformidade com o artigo 685 do Código de Processo Civil, o juiz mandará imiti-lo provisoriamente na posse dos bens”. (OBS.: Atualmente, arts. 826 a 838 do CPC/1973)
[18] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 511.
[19] Hely Lopes apud COSTA, Maria Isabel Pereira da. A transferência do domínio do bem imóvel para o poder expropriante no processo judicial. Revista AJURIS n.º 47 - 1989, pág. 146.
[20]Art.29. Efetuado o pagamento ou a consignação, expedir-se-á, em favor do expropriante, mandado de imissão de posse, valendo a sentença como título hábil para a transcrição no registro de imóveis”.(G.n.)
[21] COSTA, Maria Isabel Pereira da. Ob. Cit., p. 149/150.
[22] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 506/507 e 518, respectivamente.
[23] A Transferência da Propriedade para o Domínio do Expropriante no Curso da Ação de Desapropriação. Revista Brasileira de Direito Processual. Vol. 31 – 1.º Bim. de 1982, p. 63.
[24] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ob.cit., p. 765.
[25] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 520.
[26]Art. 24. Na audiência de instrução e julgamento proceder-se-á na conformidade do Código de Processo Civil. Encerrado o debate, o juiz proferirá sentença fixando o preço da indenização.
Parágrafo único Se não se julgar habilitado a decidir, o juiz designará desde logo outra audiência que se realizará dentro de dez dias a fim de publicar a sentença”.
[27] Ebert Chamoun apud SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 515.
[28] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 479.
[29]Art. 15. Transitada em julgado a sentença expropriatório, o imóvel será incorporado ao patrimônio da União.
Parágrafo único. Se a gleba expropriada nos termos desta lei, após o trânsito em julgado da sentença, não puder ter em cento e vinte dias a destinação prevista no artigo 1º, ficará incorporada ao patrimônio da União, reservada, até que sobrevenham as condições necessárias àquela utilização “.
[30] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 89; e  DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16.ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 167.
[31]Art. 35. Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos”.
[32] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob. Cit., p. 178.
[33] Idem.
[34] SALLES, José Carlos de Moraes. Ob. Cit., p. 523.
[35]Do Registro na Desapropriação”.  RF 298/373.

Fonte:  www.jfrn.gov.br/institucional/.../doutrina223.doc
Postado por: Sancho Neto. 

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