sábado, 30 de maio de 2009

O Juiz no Procedimento da dúvida Registral


Em que pese não exista vara de registros públicos (= Juízo) na maioria das circunscrições judiciárias, em todas as comarcas do Estado há sim juiz de registros públicos, visto que remanesce em caráter residual tal competência em razão da matéria, no juiz de direito da vara única ou da vara cível (onde houver) em toda matéria civil (art. 55, I, b, LCE 59, 2001), nas comarcas onde não existir vara especializada.

Da mesma forma que o mesmo juiz de direito, onde não há varas especializadas, ao decidir matéria de família o fará na condição de juiz de Família; matéria de sucessão, como juiz de Inventário e Sucessões; matéria de recuperação judicial de empresas, como juiz Empresarial; matéria do Estatuto da Criança e do Adolescente, como juiz da Infância e Juventude; matéria eleitoral, como juiz Eleitoral; etc. Da mesma forma, em todas as comarcas do Estado haverá curador de registros públicos, este representado através do Promotor de Justiça, mesmo que não especializado.

O que não se confunde é juiz de direito com competência para julgar matéria relacionada à legislação concernente aos registros públicos com juiz Diretor do Foro, que não exerce função jurisdicional e que apenas integra a estrutura hierarquizada da Administração Pública do Judiciário.

1. Conclusão
Em suma, em se tratando de procedimento de dúvida em matéria afeta à legislação dos registros públicos, a competência jamais será do Diretor do Foro, Referido procedimento possui natureza jurídica que se afeiçoa à jurisdição voluntária e que, por isso mesmo, exige jurisdição.

Nas comarcas desprovidas de vara especializada, tal jurisdição, em razão da matéria, portanto
de ordem pública e natureza cogente, integra o rol de competência do juiz cível, sob pena de nulidade absoluta dos atos decisórios ali lançados (art. 113, § 2º, CPC).

1. Introdução
Profunda alteração tem sido experimentada no registro brasileiro de maneira geral,
transformação esta que está em curso, a partir da Lei 8.934, de 1994, conhecida como Lei dos Notários e Registradores, que reverberou a reforma constitucional de 1988, trazendo ao Brasil um novo perfil do registro.

Um dos traços marcantes dessa nova realidade refere-se à renovação dos próprios operadores que ingressam na atividade, seja de Tabelião, seja de Oficial Registrador, em todo o país, exclusivamente através de concursos públicos, sem dúvida, a forma mais democrática de se apurar vocações. Nesse contexto, novos e talentosos atores surgem no desempenho dessa importante, singular e ainda hoje desconhecida, porque ignorada (até mesmo por parcela expressiva de operadores do direito!), atividade, permeando o reflorescimento das doutrinas notarial e registral no Brasil.
Como se sabe, dentre os objetivos primordiais do sistema registral, incluem-se o propiciar informação segura, eficácia negocial, segurança jurídica estática e dinâmica; segurança dos titulares inscritos no registro e segurança de terceiros, contratantes ou não; estabilidade no direito e dinamismo na circulação de riquezas. Em suma, importância fundamental para a democracia, notadamente nos Estados que trilham a economia não planificada, de mercado.
Disciplina do Direito Público de caráter instrumental que é, de natureza especial, preceptiva, pública, cogente e permanente, o Direito Registral depende do Poder Judiciário na procura da identificação da singularidade dessa atividade, sendo forçoso concluir que a Magistratura deve também estar preparada para esse desafio, quando menos pelas vitais e intransferíveis missões que desempenha no compartilhamento constitucional da soberania estatal.

Passada a hora desse ramo do Direito deixar de ser ignorado, é necessário investir na formação especializada, de forma geral, dos operadores e, particularmente, dos próprios magistrados (em todos os níveis e graus), não apenas com a educação inicial, mas, sobretudo, continuada.
E o procedimento de dúvida - figura processual que se insere no âmago do sistema registral,
pois a todos os serviços de registro se aplica indistintamente (art. 296, LRP, c/c o art. 18, LP), *
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Examinador dos Concursos Públicos do TJMG, para outorga das Delegações dos Serviços de Tabelionatos e Registros Públicos de Minas Gerais. Ex-Juiz de Direito Titular da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte.
Diretamente relacionada ao princípio da legalidade e ao poder-dever de qualificação registrária -; a começar no tocante à definição da autoridade judicial competente para dirimi-lo, é um bom, porém não o único, exemplo dessa premente necessidade.
Assim, com os objetivos de lançar luz à matéria, sugerir a reflexão e a formação de convicções, pontuo algumas considerações a respeito, desprovido, naturalmente, da pretensão de esgotar o assunto.
2. Juiz natural
em matéria de registros públicos A Lei de Organização e Divisão Judiciárias de Minas Gerais (LCE 59, 2001), em seu art. 57 (I e II), fixa a competência em razão da matéria, portanto de ordem absoluta, improrrogável e inafastável, sob pena de nulidade absoluta dos atos decisórios (art. 113, § 2º, CPC), do juízo de registros públicos no Estado. Especificamente, seu inciso I refere-se a toda matéria concernente à legislação dos serviços notariais e de registros públicos.
Assinala, portanto, o juiz natural em matéria de registros públicos (art. 5º, CR). E o faz sem ressalvas.

3. Natureza jurídica

O procedimento de dúvida - e o vocábulo dúvida aqui e alhures, no que concerne à legislação de registros públicos, é sempre empregado, apenas e tão-somente, no sentido técnico-jurídico e nada tem de similar em sua expressão, natureza, abrangência e significado do vulgar Substantivo feminino dúvida, que, diferentemente, exprime idéia de incerteza e hesitação - é expresso na Lei dos Notários e Registradores, art. 30, XIII, observada a sistemática processual prevista pela legislação respectiva, ou seja, é disciplinado pela Lei dos Registros Públicos, de natureza instrumental, de ordem pública e cogente, de caráter especial relativamente a outros diplomas legais, preceptiva e permanente (arts. 198 a 207 e 296, LRP). Igualmente se aplica ao Tabelionato de Protesto (art. 18, LP).

Em apertada síntese, esse procedimento, típico da legislação concernente aos registros públicos, regula situação na qual o interessado, após o protocolo do título respectivo (= prenotar com número de ordem como garantia da prioridade), tem o registro obstado pelo registrador ou tabelião de protesto pelas razões e fundamentos constantes na nota de devolução. O oficial registrador (e o tabelião de protesto) tem o poder-dever de recusar registro a título, qualquer que seja sua natureza ou origem, caso considere que o mesmo não atenda às formalidades legais (= vícios extrínsecos e/ou nulidade absoluta), mediante razões escritas e fundamentadas, pois é profissional do direito a quem a lei atribui, além de fé pública, independência no exercício de suas atribuições (arts. 3º e 28, LNR). Trata-se da aplicação do denominado princípio da legalidade (arts. 2198 e 156, LRP). Não se conformando o interessado com a recusa, cabe-lhe requerer, igualmente por escrito, a nota de dúvida confeccionada pelo titular (ou substituto mais antigo) da respectiva delegação e encaminhada, já instruída com a documentação pertinente, ao juízo competente para dirimi-la por sentença (arts. 198, caput, e 199, LRP), após anotar a ocorrência à margem da respectiva prenotação no Livro Protocolo, certificar sua ocorrência no próprio título recusado, rubricar todas as suas folhas, fornecer cópia da nota de dúvida com as razões que embasam a recusa e notificar o interessado no registro para, querendo, impugná-la perante o juízo competente no prazo de quinze (15) dias (art. 198, I a IV, LRP).

Daí, por si só, conclui-se:
I) o procedimento de dúvida concernente à legislação de registros públicos não exprime
incerteza ou hesitação de quem quer que seja;

II) a lei exige seja dirimida por sentença a ser proferida pelo juízo competente;

III) a sentença resolverá a dúvida e dela caberá recurso de apelação (art. 202, LRP);

VI) em Minas Gerais, este recurso de apelação será julgado por desembargadores integrantes de Câmara Cível isolada do Tribunal de Justiça, em turma de três julgadores (art. 22, II, b, RITJMG) ou por juízes integrantes de Tribunal Regional Federal, também em turma; nessa segunda hipótese, Caso haja manifesto e legítimo interesse jurídico da União Federal, empresa pública ou autarquia federal na solução do procedimento de dúvida (art. 108, II, CR).

Quando a lei se refere a sentença a ser proferida pelo juízo competente, de início, exclui o
Diretor do Foro, que, como se sabe, de acordo com as normas de organização e divisão judiciárias, não possui juízo (= ofício do juiz que se forma ou se objetiva no exercício da jurisdição, judicatura, jus dicere, jus dictio, poder de julgar do juiz, etc.) e muito menos profere sentenças (arts. 162, § 1º, 267, 269, 459, parágrafo único, 460, parágrafo único, do CPC), apenas decisões em sentido estrito, no exercício de um poder de império, como administrador (art. 65, I, LCE 59, 2001).

Como tal, o Diretor do Foro não é sequer independente, pois pertence a uma estrutura hierarquizada, está jungido aos princípios e aos critérios que norteiam a Administração Pública, que persegue fins exclusivamente seus, inclusive quando atua por julgamentos - v. g. - tribunais de contas, conselho de contribuintes” Não está ali, diferentemente do juiz de direito, em relação à matéria que lhe é submetida, como terceiro, para atender ao interesse subjetivo nas relações de direito privado, mas sim para dar atuação à lei no interesse exclusivamente próprio (da Administração). Outra dissonância: os eventuais recursos de suas decisões serão submetidos ao crivo do Conselho da Magistratura (art. 24, XIII, RITJMG).
É certo que a lei diz possuir natureza administrativa o procedimento de dúvida (art. 204, LRP). O faz, todavia - e sem a melhor técnica, diga-se de passagem -, apenas para pontuar que a sentença jurisdicional ali a ser proferida não possuirá o atributo da coisa julgada formal (≠ só material), já que lide, litígio (= pretensão subjetivamente resistida), partes (≠ há interessados) e ação (≠ apenas pedido), não há nesse procedimento (≠ inexiste processo), podendo o interessado no registro, a qualquer tempo, deflagrar a ação contenciosa competente (art. 204, parte final, LRP). E por quê? Porque se trata, em verdade, de jurisdição voluntária. Nessa modalidade de jurisdição - é sim, jurisdição! -, a decisão repousa, sempre, sobre uma verificação jurisdicional, em que o juiz não atua no interesse da Administração, mas sim no de outrem - é um terceiro com referência à matéria que lhe é submetida -; dando atuação à lei diante de fatos ou casos determinados, concretos, e dispondo de autoridade probatória própria e de poder decisório não exatamente nos termos pedidos (exceção ao princípio da adstrição da sentença), mediante aplicação dos juízos de conveniência e oportunidade (afasta-se o princípio da legalidade estrita: art. 1.109, CPC). O procedimento de dúvida exige jurisdição (tarefa estatal do Poder Judiciário com as garantias constitucionais do juiz natural e independente do devido processo legal e do contraditório), atributos que o Diretor do Foro não possui, conforme acima assinalado.

A respeito, pontua o Prof. José Rubens Costa:

Evidente o desacerto não apenas da atribuição de natureza administrativa à jurisdição voluntária como da alteração da natureza pelo estabelecimento de controvérsia, via contestação, impugnação, etc. O poder haver controvérsia, dissensão, desentendimento não altera a natureza da prestação. Permanece jurisdicional voluntária, em que também comparece o contraditório, justamente pela possibilidade de No que difere, a propósito, do titular da delegação a quem a lei especial atribui independência no exercício de suas atribuições (arts. 3º e 28 da LNR), em que pese possa ser fiscalizado pelo Poder Judiciário. Trata-se, assim, de atribuição cuja natureza jurídica é sui generis, não comportando, por isso, similitude como, p. ex., o Direito Administrativo, no qual um dos traços marcantes é, justamente, o princípio da hierarquia.

Conforme lição do Prof. José Rubens Costa, em excelente artigo: Natureza Jurisdicional e Voluntária. Rio de Janeiro: Forense, RF 371/163 a 174.
divergência na aplicação da lei, mas divergência não estabelecida em torno de uma pretensão resistida.

Por sinal, frise-se, trata-se da mesma jurisdição da retificação do registro civil de pessoas naturais (nascimento, casamento e óbito), do art. 109 e parágrafos, ou do registro imobiliário (de área, limites, confrontações, identificação dos titulares de direitos reais sobre o imóvel, etc.), dos arts. 212 e 213, todos da Lei dos Registros Públicos (apenas para citar alguns exemplos pinçados da própria legislação concernente aos registros públicos)
Ainda, tem idêntica natureza da jurisdição prestada, por exemplo, na separação e divórcio consensuais, alienações judiciais, testamentos e codicilos, herança jacente, incapacidade total ou parcial (tutela ou curatela dos interditos e ausentes), extinção da fundação, etc., previstos no Livro IV, Título II, do Código de Processo Civil, ou outros, como autorização a menor para viajar (art. 83 a 85, ECA), etc.
Destaca-se no próprio Regimento Interno deste Tribunal (Resolução 420, de 2003, com a redação que lhe deu a Resolução 530, de 2007) a linha divisória que buscou traçar ao definir competência do Conselho da Magistratura para julgar, em grau de recurso, ato ou decisão (≠ sentença) do Corregedor-Geral de Justiça (também Diretor do Foro da Comarca da Capital, art. 16, III), ou do juiz que impuser pena disciplinar ou ainda a respeito de reclamações sobre a percepção de custas e emolumentos, com a ressalva das dúvidas relativas aos registros públicos (art. 24, I, VII e XIII). E, por força de lei, esse juiz que impõe pena disciplinar, orienta e fiscaliza é o Diretor do Foro (art. 65, LCE 59, de 2001, com a redação que lhe deu a LCE 85, de 2005). Diferentemente, nos procedimentos jurisdicionais relativos à legislação dos registros públicos, nos quais o Diretor do Foro não tem nem competência, nem atribuição, entre os quais se insere o procedimento de dúvida, a competência para julgamento, em grau de recurso, é das Câmaras Cíveis isoladas (1ª a 8ª - art. 22 do RITJMG).
Interpretar de outra forma, como, por exemplo, consta da fundamentação de alguns julgados
autorizaria, por simetria e coerência, estabelecer que nas comarcas desprovidas de vara especializada de registros públicos, de família, infância e juventude e sucessões (99%), tais pedidos, todos eles e mais alguns da mesma natureza jurídica, deverão ser decididos pelo já assoberbado juiz Diretor do Foro.

4. Diretor do Foro é juiz de registros públicos?

O que não exclui, absolutamente, a possibilidade jurídica de ações contenciosas concernentes à legislação de registros públicos. Dizer que tal juízo é exclusivamente “administrativo”, ou ainda restrito à jurisdição voluntária, corresponde a mito. Como todo mito, não tem qualquer fundamento científico ou mesmo amparo na lei.

Juiz Competente no Procedimento de Dúvida
Marcelo Guimarães Rodrigues
Sumário: 1. Introdução. 2. Juiz natural em matéria de registros públicos. 3. Natureza
jurídica. 4. Diretor do Foro é juiz de registros públicos? 5. Conclusão.
Apelações Cíveis 1.0000.00.186105-3/000, 1.0000.06.441321-4/000 e 1.0384.06.047843/001.5

Um comentário:

Anônimo disse...

A introdução do artigo encontra-se com um relevante erro para quem não é da área notarial e de registro e merece esclarecimento.
"Profunda alteração tem sido experimentada no registro brasileiro de maneira geral,
transformação esta que está em curso, a partir da Lei 8.934, de 1994".
A Lei correta é a Lei 8.935/94 e não como constou.